quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Os Pescadores

[À memória do avô, morto no mar]

Tudo aqui é pobre e humilde, mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham, os pescadores não fazem mais nada - deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha. A sorte destas mulheres numerosas melhorou muito desde que a Câmara lhes aforou terrenos no areal para cultivo. São as mulheres também que, depois da sardinha disputada a lanço, a levam à cabeça para a casa da salga, grandes barracões de madeira com manjedouras encostadas às paredes para as bestas e um depósito de sal branco de Aveiro.  É ali que o almocreve a salpica de fresco antes de se meter a caminho, ou as mulheres a lavam em água ensossa. Só em Mira há vinte desses barracões, onde, quando é muita, ou não tem comprador,  a metem em lagares de madeira e em dornas, ficando de salmoura até chegar o Inverno - quando o homem esfaimado a estende num pedaço de pão sabendo-lhe a mais...

Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filósofo como eu.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A farsa

[Capa de Julião Machado para a 1ª edição, em 1903]

Desde pequena que sinto isto aqui a remorder-me, sem descanso, dia e noite, sempre. A inveja é um veneno que me tem azedado toda a existência: é um veneno amargo e sem o qual eu não posso passar. A inveja derranca-me e excita-me, revolver todo o meu ser e faz subir à tona de alma a lama esquecida: exaspera-me todas as feridas: põe-mas em carne viva. Faz-me bem. Desde pequena que toda a gente tem pena de mim e me despreza. Sou assim velha desde pequena: aos onze anos já era reflectida e má como as cobras. - É tão feia, coitadinha! - E esta estúpida piedade acompanhou-me - cresceu comigo, pegou-se-me e queima-me com um vestido de fogo.
- Toda a gente tem tido pena da Candidinha!
Já em pequena trazia este mesmo xaile, este mesmo trapo, que foi crescendo comigo. E não creio - nunca cri em Deus, no Deus dos pobres, no Deus que recomenda a desgraça, a humilhação, a esmola, no Deus que aconselha a resignação e a fome. No Deus a quem as velhas ricas fazem lausperenes e rezam ladainhas; no Deus que as protege -  e que elas têm em casa em ricos oratórios, entre lamparinas e velas de cera, pregado na cruz, com resplendores de brilhantes.
Elas mandam nos padres, confessam-se, vão às missas com vestidos de seda a rugir, dispõem do crucificado, ao qual desde pequena me obrigam a rezar, com os joelhos de rastos nas lajes, doridos e inchados de frio... É desse tempo que data o frio que se me coou até aos ossos e nunca mais me deixou.
O meu filho?... O meu filho alimentei-o com ódio - criei-o à custa da desgraça. Preguei-lhe todos os rancores, todos os exasperos, tudo quanto sofri. Mostrei-lhe a minha alma e a alma dos outros. Fartei-o de Verdade. Disse-lhe, é certo, que neste mundo só o dinheiro vale, e que os pobres são sempre desprezados e calcados. Os pobres nunca têm razão: quebra-se sempre pelo mais fraco. O meu filho qui-lo à minha imagem e semelhança; desejei insuflar-lhe isto que sinto; livrá-lo de ser escarnecido e pobre; de viver de esmolas. Quis que o meu filho fosse eu.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Impressões e Paisagens

[Primeiro livro, de contos, publicado aos 23 anos]

Honesto e leal. Rude, cheio de rugas, bem velho já. Com saúde ainda, os dentes brancos, a barba grisalha, o olhar vivo e moço. Cheia de dedicações a sua vida inteira. Criança ainda embarcara, crestara-se-lhe a pele, fizera-se valente no mar. Sustentava a mãe. Tinha asperezas na voz; âncoras e datas a tinta azul nos braços possantes... Envelhecera, morrera-lhe a mulher, e ele ficara em terra por fim, com o filho e os netos. A neta casara um dia com o Nel, um rapagão que, como ele, partira em seguida na sua primeira viagem de marinheiro para o Brasil. Mas quando a barca voltou, ele não vinha. Lá tinha ficado, uma noite de tempestade, no mar... Envelhecera, não podia trabalhar. O filho, os netos, pescavam, e ele ajudava-os a consertar as redes. Mas o peixe escasseava... E o que ele sofria ao ver os outros trabalhar no batel enquanto ele ficava em casa a remendar as velas. O que ele sofria, bom Deus!...

[Do conto "O Marinheiro"]

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Os Pobres


Triste existência sem ódio e sem gritos. A vida não na entende e recebe cada empurrão com o ar espantado e aflito de quem não compreende. Que mal fizera? Que mal fizera? Pois a desgraça faz rir? O sofrimento faz rir?
E em torno as bocas escancararam-se, ao verem-no gordo, pedinchão e grotesco. Há seres que nascem com esta sina - amargar a vida. Tudo lhe corre torto, até as coisas mais simples, as coisas que para os outros nem sequer existem. Em que hora aziaga encontrou a má sorte que nunca mais o deixou? A desgraça escarrancha-se no pescoço de certos homens. E é para sempre, para toda a vida! Nunca mais os larga. Viera a quebra, aflições ainda mais negras que o coração dos outros. Enganavam-no com a alegria de o verem rebaixado e perdido, empurrão daqui, empurrão dali, aos tombos por esse mundo. E ele punha-se a olhar para a desgraça, atarantado e estúpido. Que mal fizera para sofrer? E mesmo a chorar, a sua máscara, de cabelos brancos estacados, fazia rir.
Era dessas criaturas a quem um montão de desgraças torna ainda mais ridículas: a ruína, a miséria e a fome. Enlameado pela vida fora, resignado e chorão, ele aí vai...

[Sobre Gebo, um dos personagens mais comoventes criados por Raul Brandão]

domingo, 26 de setembro de 2010

Húmus

[Edição de 2010]

Qual é a minha experiência da vida? Nenhuma. Qual é a lei que extrais da vida? Nenhuma. Só o espanto. Só uma coisa cada vez maior, sempre assumindo maiores proporções, que sinto desabar no silêncio, mais dourada e frenética que o sonho. Tudo se reduz a coisas a que damos valor, e a coisas a que não damos valor. E entretanto ao nosso lado passa o tropel mágico, desesperado e caótico. Ali fora desabam os séculos e a torrente misteriosa que leva consigo estrelas em vez de calhaus. O jacto de portento vem do infinito e caminha para o infinito, levando consigo a alma, o universo, o lógico e o ilógico, o absurdo e Deus.
Uma vida resume-se em duas linhas, sintetiza-se em dois ou três factos. Se a vida fosse só isso não valia a pena vivê-la. A vida é muito maior pelo sonho do que pela realidade. Pelo que suspeitamos do que pelo que conhecemos. Se nos contentamos com a superfície, não há nada mais estúpido - se nos quedamos a contemplá-la faz tonturas. É por isso que eu teimo que a Morte não tem só cinco letras, mas o mais belo, o mais tremendo, o mais profundo dos mistérios.

sábado, 25 de setembro de 2010

A morte do palhaço

É sempre a mesma coisa há meses, a mesma ansiedade sem causa, que não sei de onde provém. Parece que espero uma desgraça desconhecida, uma catástrofe que ignoro - e que nunca chegará. Que nunca chegará, ouves bem? ... Vivo alheado, o cérebro espalhado por todas as coisas: apenas esta inquietação me domina e me enche. Se saio do sonho, não sei viver. Sobressalto-me com o menor ruído imprevisto: a porta que se fecha é para mim uma angústia. Compreendes isto? Antes a catástrofe que espero caísse sobre mim e me estatelasse no solo, do que este terror contínuo, a inquietação do que é vago, o aflitivo do nada...

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Entrevista a Raul Brandão


[Na sua edição de 7 de Dezembro de 1930, o jornal republicano vimaranense A Velha Guarda, noticiava a morte Raul Brandão, desaparecido dois dias antes, e publicava uma entrevista do poeta Américo Durão ao escritor, que fala, entre outros assuntos, do seu processo de trabalho.]

Raul Brandão, o novelista, Eugénio de Castro, o poeta, tão diferentes e tão distantes, ocupam hoje os dois lugares mais eminentes da literatura portuguesa. A obra de Eugénio de Castro é serena e bela como os mármores de Atenas. A de Raul Brandão mais convulsa e abstracta. As figuras dos romances deste grande escritor são irreais, simbólicas. Ao abrirmos um dos seus livros, dir-se-ia mergulharmos num mundo de fantasmas. Das suas páginas desprende-se uma vida espectral, de sonho. E, no entanto, algumas as suas personagens palpitam de vida interior, todos nós as conhecemos. Acotovelamo-las na rua. Qual de nós não encontrou ainda no seu caminho a Candidinha, de falas mansas e coração cheio do ódio que as humilhações e desprezos, gota a gota lá verteram? E o pobre K. Maurício? E o Gabiru? E o coveiro, cuja crosta de inveterado cinismo se rompe, deixando escapar em cataratas a dor e a revolta, quando a morte na sua ronda cega, insensível, vem bater à sua porta para levar-lhe a filha? E a mulher a dias, mísero farrapo de humildade e sacrifício, que passa na vida sem a noção de que a vida lhe pertence a ela também? E os seus ladrões e prostitutas, que são apenas alma?

Dir-se-ia que Raul Brandão, como Prometeu, roubou aos Deuses o fogo com que havia de acender em estrelas a miséria daquele humano barro envilecido. Devia ser interessante descobrir o processo usado pelo escritor para dar às suas criações aquela forma assim impalpável e viva: ouvi-lo sobre os homens, literatos e artistas do seu tempo. O que pensaria dos novos o Mestre genial do Húmus e dos Pescadores? Que prosadores e poetas mereceriam a honra da sua preferência? E recordamo-nos da admiração reverente com que Aquilino Ribeiro lhe fala. Mestre -diz Aquilino ao dirigir-se ao grande novelista da História de um Palhaço. Assim dita a palavra Mestre enobrece Raul Brandão e o magnífico prosador da Via Sinuosa.


Como trabalha o escritor

Pedimos-lhe uma entrevista nesse sentido: mas Raul Brandão interrompe-nos surpreendido e rápido:
Eu falar-lhe dos novos, de prosadores, de artistas... Você está doido! Sei lá alguma coisa disso…

Aguardámos, sorrindo, que a maré passasse e foi o próprio Raul Brandão que, amavelmente, se nos dirigiu:
Porque não vem você passar oito dias comigo e minha mulher à nossa casa do Norte? Ali ver-me-á trabalhar e poderá escrever alguma coisa interessante. Não quer vir? Porquê?

Não... Não posso agora sair de Lisboa.
Pois é, pena. Olhe, então, se quiser, apareça numa destas tardes lá por casa. Sabe onde moro? Ali, a S. Domingos, à Lapa…

Ficou combinado, iríamos a sua casa.
E no último domingo, às onze e meia batíamos-lhe à porta. Foi o próprio escritor quem veio abrir, sorridente:
Você é implacável, ó Américo Durão. Antão o que quer? Diga lá o quer você de mim?

Já que não deseja referir-se aos outros, fale-nos de si, explique-nos a sua maneira de trabalhar.
Mas eu tenho lá maneira de trabalhar! Você tem cada pergunta...

Exalta-se novamente, o seu olhar de um azul nevoento acende-se, purifica-se, torna-se límpido e luminoso. Dá duas voltas rápidas na casa, ri como uma criança. Mas é evidente que tem um grande desejo de atender o nosso pedido. Depressa se acalma, e explica-nos:
Oiça. Se me ocorre o esboço duma figura, uma observação, um detalhe, tomo um apontamento, uma nota... Depois, aguardo o momento oportuno, e quando ele chega, minha mulher senta-se aí a essa secretária e escreve o que eu, a passear dum lado para o outro, vou compondo e lhe dito. Aqui tem... Agora o meu processo de trabalho... Eu sei lá! Essas coisas vêm-me à cabeça e às vezes sucede não ficarem mal...

Diz isto numa grande simplicidade, como que envergonhado de falar de si, nervosamente, com os olhos acesos e um riso, alto, infantil, que contrasta singularmente com a sua elevada estatura e com os seus cabelos brancos. Abre uma gaveta da secretária e mostra-nos um grande rolo desordenado de folhas de papel, cobertos de uma caligrafia fina e veloz:
Vê… É o manuscrito das minhas Memórias, o 3.° volume. Foi minha mulher quem escreveu tudo isto.

O que haverá ali, naquele rolo de papéis à volta dos quais, conhecida a sinceridade e a irreverência do escritor, se agitam já tantas curiosidades e receios? Hesitamos em perguntar-lho e não nos atrevendo a fazê-lo, damos um novo rumo à entrevista:

Que idade tinha o senhor Raul Brandão quando começou a escrever?
A dizer-lhe a verdade, já me não lembro. E depois, que interesse pode isso ter para os seus leitores? Foi na Revista de Hoje, onde colaboraram António Nobre, Alberto de Oliveira e Junqueiro, que saíram as minhas primeiras coisas... Eu acompanhava, então, muito, com Alberto de Oliveira e Nobre...

Raul Brandão não está dando; uma entrevista. Conversa connosco, animado, passeando, dum lado para o outro, como se estives se ditando a sua mulher.

O primeiro livro

O meu primeiro livro Impressões e Paisagens publiquei-o no Porto... Eu lhe digo, espere... Foi em 1890. Seguiu-se-lhe a História dum Palhaço, em 1896, editado pela Parceria António Maria Pereira.

Estive quase a dizer-lhe que ainda há uma dúzia de anos comprei naquela livraria um exemplar novo da primeira edição da História dum Palhaço, por meia dúzia de tostões. Mas considerando a tempo, calei-me. Raul Brandão voltara a falar-nos de António Nobre. Dos passeios que davam juntos pela Foz, por Leça, até à Boa Nova. Pelo milagre da sua palavra evocadora eu sentia entre nós a presença do poeta. Subitamente, o cronista do El-rei Junot sorriu a uma lembrança e, surpreendendo uma interrogação no nosso olhar, prosseguiu em voz alta:
Estou a lembrar-me dum artigo que publiquei sobre Camilo e Eça. Terminava por dizer que se Camilo se suicidara com um tiro, Eça, em igualdade de circunstâncias, se envenenaria. Eça de Queiroz leu o meu artigo e, achando graça, pediu a um amigo para lhe indicar quem eu era, quando passassem por mim. Efectivamente, uma tarde, embora eu simulasse não dar por isso, senti o olhar de Eça seguir-me com curiosidade e interesse.

O Mestre trabalhou nos jornais durante algum tempo, não é verdade?
Sim, durante muitos anos. Foi na República Portuguesa, de João Chagas, que eu iniciei a minha vida jornalística. Vencido o movimento revolucionário de 31 de Janeiro, João Chagas foi deportado e o jornal terminou. Depois, em Lisboa, antes de me aceitarem num jornal foi uma tragédia. Imagina lá... Não acreditavam que eu servisse para jornalista. De tal modo que a princípio tive de trabalhar de graça: mas, por fim, já era solicitado e me pagavam bem.

Em que jornais trabalhou o senhor Raul Brandão?
Aqui, em Lisboa, estive no Correio da Manhã, de Manuel Pinheiro Chagas, e no Dia. Mais tarde, fui dono do Imparcial, que António José de Almeida me comprou para fazer A República, onde também colaborei. E agora, ainda, às vezes, escrevo na Seara Nova, que já dirigi.

Que escritores impressionaram mais profundamente o seu espírito?
Dos portugueses, Camilo.

Fale duma maneira geral...
Os russos interessaram-me muito, destacando entre estes Dostoiewsky. Mas os que sempre mais atraíram o meu interesse e a minha curiosidade foram os escritores de memórias. Principalmente Saint Simon, Casanova, Benevenuto Cellini, e, acima de todos, o Cardeal de Metz. Mas quem deixou um traço mais profundo na minha existência e na minha alma, não foram os escritores: tem sido minha mulher, e foi minha mãe e uma velha criada, a Maria Emília... No prefácio do 2.° volume das Memórias já eu disse o grande lugar que minha mulher ocupa na minha vida. De minha mãe...

e, Raul Brandão, acedendo a um pedido nosso, ditou-nos esta linda página de ternura, do seu volume inédito de Memórias:

Uma evocação

Algumas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui, a meu lado. Minha mãe, só nervos e paixão, viu cair por terra todos os seus sonhos e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo. A realidade afastou-a sempre de si. Venceu-a. Alimentou-se do mesmo sonho que a devorou até final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Dela herdei a sensibilidade e também o sonho. Bastava que a bica do quintal deitasse menos para minha mãe adoecer. Ficava horas a olhar extasiada o pouco de musgo humedecido, donde escorria, vindo da escuridão, o fio azul infatigável que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas líquidas, que logo subiam a superfície reluzindo iluminadas.

Às vezes íamos vê-la brotar no fundo da mina e assistíamos, ansiosos, ao nascer da água borbulhando na madre e escorrendo pela caleira de pedra. Quando, mais tarde, minei o monte fi-lo com a mesma ansiedade. De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo desde o jorro de Inverno que transborda, ao fio de Setembro, deitado com aflição.

– Se secasse!...

De noite punha o ouvido à escuta, como acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz extraordinária de pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira, nem a das folhas, nem a do vento – nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tom, às vezes, e, por momentos, emudece.

– Secou! – E lá torna a correr.

Plantou árvores até aos últimos dias como eu as planto. E já prostrada, mantinha de pé a ilusão e teimava em sonhar, como eu sonho, até final.

Às vezes, tendo corrido o quintal numa exaltação, corria para ela e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Minha mãe não me dizia palavra, nem sequer me estranhava porque via em mim reproduzida a sua sensibilidade exagerada – só me pousava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho. A lua aparecia atrás dos montes sobre a mais bela paisagem do mundo, porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.

O meu sonho está preso por um fio ténue indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Talvez porque o amor nunca mais se apaga, talvez porque a luz seja a única realidade do mundo, o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade. Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, lá está todas as noites, ao pé da bica. Não a separo daquele fio que a lua toca por momentos com o dedo molhado em branco, e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto àqueles que a sabem amar."

Depois, enternecidamente, ergueu diante de nós a figura da velha criada. São ainda para o mesmo livro os seguintes períodos, que nos ditou:

A Maria Emília foi até morrer nossa criada. Estou a vê-la, de bigode branco e olhos espertos, dum azul já desbotado pela velhice, mas teimando em exprimirem ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada, a sorrir, e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar, atravessando a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é a expressão mais íntima e mais bela da sua alma – a alegria na desgraça.

Os sessenta anos para o talento para a alma de Raul Brandão são a plena mocidade. Perguntamos-lhe: Além do 3.º volume das Memórias, que outras obras prepara ainda o Mestre?
Tenho no prelo um livro para crianças, feito de colaboração com minha mulher – Portugal Pequenino, de Raul Brandão e Maria Angelina… E na próxima Primavera conto publicar uma novela – Pobre de Pedir.

Alegremo-nos. A nossa literatura, actualmente tão dessorada e anémica, vai enriquecer-se com um livro de valor. E quantas obras belas e audazes não podemos ainda esperar dos seus cabelos brancos e da sua mocidade.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A morte de Raul Brandão


"O artista de olhos claros que desapareceu era demasiadamente homem para ser estátua; o seu coração pulsava demais pelos que sofrem e choram e gemem doloridos, para poder atingir o sarcasmo e a frieza analitica que caracterizam a maioria dos génios catalogados, gigantes de mão dura que nos amarfanham e plasmam os sentidos sem perder a sua inalterável frieza, a frieza do mármore incomovivel de todos os monumentos."
Amâncio Cabral in Ilustração, nº 120

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Os pobres


Aquele que é um dos melhores livros de Raul Brandão é também um dos mais difíceis de encontrar. Os Pobres. Em compensação, é o único que existe disponível em e-book. É de graça. E tem um prefácio magnífico de Guerra Junqueiro.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Obra publicada

Bibliografia activa

1890 – Impressões e Paisagens
1896 – História d’um Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício)
1901 – O Padre
1903 – A Farsa
1906 – Os Pobres
1912 – El-Rei Junot
1914 – A Conspiração de 1817
1915 – O Cerco do Porto – Pelo Coronel Owen (Prefácio e Notas)
1917 – Húmus
1919 – Memórias. Vol. I
1923 – Teatro – “O Gebo e a Sombra”, “O Rei Imaginário” e “O Doido e a Morte”
         – Os Pescadores
1925 – Memórias. Vol. II
1926 – As Ilhas Desconhecidas
        –  A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore (2ª edição refundida de História d’um Palhaço)
1927 – Eu sou um Homem de Bem (monólogo teatral)
     –  Jesus Cristo em Lisboa (tragicomédia em colaboração com Teixeira de Pascoaes)
1929 – O Avejão – Episódio Dramático
1930 – Portugal Pequenino (em colaboração com Maria Angelina)
1931 – O Pobre de Pedir (edição póstuma)
1933 – Memórias. Vol. III (edição póstuma)
1981 – A Noite de Natal (em colaboração com Júlio Brandão) – Leitura, introdução e notas por José Carlos Seabra Pereira
1984 – Os Operários – Fixação do texto, introdução e notas por Túlio Ramires Ferro
2000 – Húmus (1917; 1921; 1926) – Edição crítica de Maria João Reynaud

Obras traduzidas

La Farsa (Trad. castelhana de Valentin de Pedro, s/d.)
Los Pobres (Trad. castelhana de Valentin de Pedro, Madrid, Ed. Rivadeneyra, 1921)
Humus (Trad. castelhana de Ribero i Rovira, Barcelona, Ed. Cervantes, s/d.)
Humus (Trad. francesa e prefácio de Françoise Laye, Paris, F. Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, PUF, 1981)
Humus (Trad. francesa e prefácio de Françoise Laye, Paris, Flammarion, 1992)

Bibliografia passiva (selecção)

- Andrade, João Pedro de, Raul Brandão – A Obra e o Homem, 2ª ed., Lisboa, Acontecimento, 2002.
- Antunes, Manuel, “Temperamento e Universo de Raul Brandão”, in Occasionalia, Homens e Ideias de Ontem e de Hoje, Lisboa, Multinova, 1980.
- Castilho, Guilherme de, “A Farsa e a problemática de Raul Brandão”, in Colóquio/Letras, nº2, Lisboa, Junho de 1971.
–  Vida e Obra de Raul Brandão, Lisboa, Bertrand, 1979.
- Coelho, Jacinto do Prado, “O Húmus de Raul Brandão: uma obra de hoje”, in A Letra e o Leitor, Lisboa, Portugália Editora, 1969.
–  “Da Vivência do Tempo em Raul Brandão”, in Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976.
- Faria, Duarte, “A retórica da antítese: uma introdução a Raul Brandão”, in Outros Sentidos da Literatura, Lisboa, Veja, 1981.
- Ferreira, Vergílio, “No limiar de um mundo, Raul Brandão”, in Espaço do Invisível II, Lisboa, Arcádia, 1976.
- Ferro, Túlio Ramires, Raul Brandão et le Symbolisme Portugais, Coimbra, Coimbra Editora, 1949.
- “Raul Brandão e a Questão Social”, Introdução a Raul Brandão, Os Operários, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1984.
- Lopes, Óscar, “Raul Brandão”, in Ler e Depois. Crítica e Interpretação Literária 1, Porto, Inova, 1970.
- Machado, Álvaro Manuel, Raul Brandão – Entre o Romantismo e o Modernismo, 2ª ed., Presença, Lisboa, 1999.
- Mourão-Ferreira, David, “Releitura do Húmus”, in Tópicos de Crítica e História Literária, Lisboa, União Gráfica, 1969.
- Nemésio, Vitorino, “Raul Brandão, íntimo”, in Sob os Signos de Agora, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932.
- Pereira, José Carlos Seabra, “Introdução a Raul Brandão – Júlio Brandão”, in A Noite de Natal, Lisboa, Imprensa Nacional-Biblioteca Nacional, 1981.
- Picchio, Luciana Stegagno, “O teatro existencial de Raul Brandão”, in História do Teatro Português, Lisboa, Portugália, 1969.
- Pires, A.M.B. Machado, Raul Brandão e Vitorino Nemésio – Ensaios, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.
- Pires, José Cardoso, “Ler o mar”, prefácio a Os Pescadores, Lisboa, Comunicação, 1986.
Raul Brandão – Teixeira de Pascoaes. Correspondência. Recolha, transcrição, actualização do texto, introdução e notas de António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano, Lisboa, Quetzal, 1994.
- Rebello, Luís Francisco, “Um Teatro de Dor e de Sonho”, Estudo introdutório a Raul Brandão, Teatro, Lisboa, Comunicação, 1986.
- Régio, José, “Raul Brandão e o Húmus”, in Ler, nº8, Novembro 1952.
- Reynaud, Maria João, Metamorfoses da Escrita, Porto, Campo das Letras, 2000.
- Reys, Câmara, As Questões Morais e Sociais na Literatura. (IV) Raul Brandão, Lisboa, Seara Nova, 1942.
- Rodrigues, Maria Idalina Resina, “O Húmus, texto de encontro e indecisão”, in Colóquio/Letras, nº45, Lisboa, Setembro 1978.
- Sacramento, Mário, “Chave para Raul Brandão”, in Ensaios de Domingo, Coimbra, Coimbra Editora, 1959.
- Seixo, Maria Alzira, “Raul Brandão (Húmus)”, in Para um Estudo da Expressão do Tempo no Romance Português, Lisboa, Publicações do Centro de Estudos Filológicos, 1968.
- Sérgio, António, “Os Pescadores por Raul Brandão”, in Ensaios, t. III, Lisboa, Sá da Costa, 1980.
- Serrão, Joel, “Raul Brandão: espanto, absurdo e sonho”, in Temas Oitocentistas II, Lisboa, Portugália, 1962.
- Simões, João Gaspar, “Raul Brandão: realismo irrealista”, in Perspectiva Histórica da Ficção Portuguesa. Das Origens ao Século XX, Lisboa, Dom Quixote, 1987.
- Viçoso, Vítor, “Das feridas de narciso ao pânico no reino das ideologias”, Estudo introdutório a O Pobre de Pedir, Lisboa, Comunicação, 1984.
–  A Máscara e o Sonho – Vozes, Imagens e Símbolos na Ficção de Raul Brandão, Lisboa, Cosmos, 1999.

[in Centro Virtual Camões]

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Raul Brandão, um «rasto visível» na literatura portuguesa do século XX

É muito difícil encontrar um escritor português cuja obra, como a de Raul Brandão, tenha influenciado de forma tão evidente a escrita de tantos outros escritores das gerações e das escolas literárias que à sua se seguiram. A matriz positivista comtiana cujas pegadas encontramos também em escritores portugueses anteriores e posteriores, como Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais, Fernando Pessoa, para não falar na grande maioria dos escritores da chamada Geração de 70 e, depois, a dimensão humanitarista por ele assimilada, sobretudo, através da atenta leitura dos grandes ficcionistas russos Tolstoi, Dostoievski e Gorki, irá ter eco, século XX adentro, no grupo da Presença – José Régio, Branquinho da Fonseca, António Navarro, João Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt, Adolfo Casais Monteiro, Miguel Torga, Fausto José... e evidenciar a sua semente noutras obras posteriores, como a de Ferreira de Castro, José-Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira, Manuel Mendes, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, José Cardoso Pires, Herberto Hélder, para referir apenas alguns dos casos mais relevantes. Na realidade, «poucos autores portugueses deixaram até nós um rasto tão visível», como disse a seu respeito Óscar Lopes.

Pertencente a uma geração literária fortemente influenciada pelo Simbolismo-Decadentismo que de França nos chegava, escritores cujas obras iriam iluminar o século seguinte, fazendo parte daquela a que também chamaram a «geração de 90», da qual fizeram parte, entre outros, Eugénio de Castro, Camilo Pessanha, Wenceslau de Morais, António Patrício, António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Justino de Montalvão, D. João de Castro, todavia, Raul Brandão seria, entre todos eles, o que, rompendo com esse decadentismo finissecular, mais raízes veio a deixar na literatura das décadas futuras. A sua obra não terá por certo sido das mais vastas, contudo é das mais ricas na gama de tonalidades humanas das suas personagens e até mesmo nas hábeis dissonâncias que soube criar entre o trágico e o grotesco das situações ficcionais em que as envolveu. Talvez por isso, por essa modernidade latente na sua técnica efabulatória, tenha funcionado como um farol, como uma luminosa referência para as gerações seguintes.

A infância e a adolescência

Filho e neto de gente do mar, «o mar será também para ele um apelo sempre presente».1 A infância passa-a nesse ambiente que virá a descrever de forma tão eloquente quanto comovida em Os Pescadores. Nas suas Memórias descreve: «Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto do Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele.» [...] «O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo, o que sei das árvores, da ternura, da cor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada».

Na escola que, sob a direcção das senhoras Militoas, funcionava por essa época na Foz Velha, aprende as primeiras letras. Devido a incidentes da sua saúde frágil interrompe os estudos por dois anos, indo depois com os pais para o Porto, onde inicia o curso liceal no Colégio de São Carlos. Sobre este período da sua vida, recorremos de novo às suas Memórias: «Inverno. Luz turva. Um casarão enorme no alto da Rua Fernandes Tomás dentro de uma cerca calcinada... Entro: sala enorme, cheia de petizes dominados pelo mesmo sentimento de terror - 8×7? - 8×7? - Entre as bancadas passeia um homem atarracado e grosso de cabelo encarapinhado de mulato, botas de montar e a palmatória metida no cano das botas: - 8×7? - E o seu vozeirão mete medo. - Eu tinha todos os dias cólicas horríveis, antes de entrar no colégio de S. Carlos, e foi ali que principiei a estragar os meus nervos e a amargar a vida. [...] Foi ali», dirá também «que principiei a estragar os meus nervos e a amargurar a vida; há quem tenha saudades do colégio: eu sonho às vezes com ele e acordo sempre passado de terror...»3 Porém, nem tudo terá sido tão sinistro como a aprendizagem da tabuada, pois é naquela escola que Brandão desperta para as letras – no Andaluz. Em 1888 completa o curso liceal e, no ano lectivo seguinte, começa a frequentar como ouvinte o Curso Superior de Letras da Universidade do Porto.

A carreira militar

Entretanto, é promulgada a obrigatoriedade da prestação do serviço militar e Raul assenta praça, matriculando-se depois na Escola do Exército. Recorramos de novo às suas Memórias: «Na Escola do Exército ensinavam, no meu tempo, coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender.» Na realidade, a carreira militar não se adequava à sua natureza pacífica e contemplativa. No registo das provas que presta, em 1893, no Regimento de Infantaria nº. 6, do Porto, figuram as seguintes elucidativas classificações: «Tiro: atirador de 2ª classe; ginástica: medíocre; esgrima: medíocre.» No entanto, segundo parece, a vontade do pai e o desejo de sua mãe de o ver garbosamente uniformizado, prevaleceram.

De acordo com elementos constantes da sua folha de serviço, além de algum tempo de quartel, uma grande parte da sua vida de oficial decorreu imerso em papelada, em trabalho meramente burocrático. Quando, já na idade madura, faz um balanço da sua vida militar, diz-nos: «Durante o tempo que fui tropa vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel (era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigo para o outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior...»4

A carreira jornalística

Raul Brandão começa a sua actividade jornalística antes mesmo de publicar o seu primeiro livro, pois inicia-a nos bancos do colégio de São Carlos, escrevendo em modestos jornais e panfletos escolares, como é o caso de O Andaluz, revista que os alunos do Colégio publicam «a favor das vítimas dos terramotos de Andaluzia», e onde colaboram, além de Raul, outros estudantes que viriam a dar que falar, tais como João de Lemos, Trindade Coelho e José Leite de Vasconcelos. É o primeiro texto literário que se lhe conhece – «Bendita!», clama, exaltando a caridade como sendo a mais bendita das virtudes.

Porém, é quando, no ano de 1888, vem para Lisboa como aluno da Escola do Exército, que começa a publicar, agora com algum carácter profissional, textos em revistas e jornais. Assim, colabora em O Imparcial, no Correio da Noite, na Revista Ilustrada, no Novidades, no Correio da Manhã, jornal fundado por Pinheiro Chagas, escritor com o qual Raul Brandão ainda chega a conviver, em O Dia, dirigido por José Maria Alpoim, na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós (e onde colaboram autores como Oliveira Martins, Antero de Quental, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Magalhães Lima, Leite de Vasconcelos, Malheiro Dias, Fialho de Almeida...), na Revista de Hoje, por si fundada e onde escreverá até 1896, da qual será co-director com Júlio Brandão (Esclareça-se que Raul Brandão, apesar da coincidência dos apelidos, não é seu familiar). É ainda colaborador assíduo de jornais como O Século, Diário de Notícias, Portugal-Brasil, etc., etc. Em 1912, relaciona-se com Teixeira de Pascoais e embora não coincida ideologicamente com os princípios da Renascença Portuguesa e do saudosismo, colabora em A Águia com um importante artigo sobre Fialho de Almeida, falecido em 4 de Março do ano anterior. Com Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Azeredo Perdigão, Câmara Reis e outros, lança a revista de «doutrina e crítica» Seara Nova que, como se sabe, irá desempenhar, ao longo das décadas seguintes, um papel importante na vida cultural e política do País.

Esta sua grande paixão pelo jornalismo, actividade que foi exercendo, como amador e como profissional, ao longo de quase toda a sua vida, constitui, como salienta Guilherme de Castilho, na já citada biografia que acompanha a edição das Memórias, «a tarimba [...] que lhe proporcionou a oportunidade de contactar com um mundo cuja existência até então ignorava: o mundo da miséria, do vício e do crime. Os seus inquéritos de jovem repórter, nos hospitais, nas cadeias, nos prostíbulos abriram novas perspectivas no espírito e na consciência do escritor.»

Raul Brandão escritor

Falemos então deste escritor forjado não só pela sua grande sensibilidade como também pela sua experiência de vida – a escolar, a jornalística, a militar... A obra de todos os escritores é sempre, de uma ou de outra forma, o produto das suas respectivas vivências. Raul Brandão, porém, é um homem que baseia os seus livros em consistentes alicerces, construídos com a argamassa das recordações que foi acumulando, memórias de seres humanos com os quais se foi cruzando ao longo da sua existência. As suas personagens, a Candidinha, o Gabiru, o Gebo, a Joana, a Luísa, o Ziem, o Vaz, são arrancadas à vida real, sentimo-las palpitar, na sua carne de papel e tinta – convivem e interagem connosco. Pelo princípio da derradeira década do século XIX, Raul fazia parte da imensa hoste de escritores seduzidos pelo Simbolismo vivendo um período dominado pelo nefelibatismo.

Porém, a preocupação humanista pela sorte dos humilhados e ofendidos, a condenação da exploração do homem pelo homem, a denúncia das chagas sociais feita um pouco à maneira dos seus mestres russos, constitui a nota dominante da sua produção literária, surgindo sempre, sob as diversas camadas sedimentares que vai acumulando ao longo da sua evolução como escritor, como visão estruturante e unificadora da sua obra – «Por cada homem que amontoa ouro há cem criaturas morrendo de desespero», diz em Os Pobres. São também bastante elucidativas as palavras com que termina o romance Húmus: «Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitectura de ferro. [...] É com palavras que são apenas sons que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.»

Quando, em 1890, ainda sob a influência das ideias filosóficas, políticas, sociológicas e religiosas de Sampaio Bruno bem como do estilo ironicamente acutilante de Fialho e da prosa requintada, mas ferina, de Eça (para não falar de uma técnica narrativa que algo terá bebido em Camilo Castelo Branco), publica o seu primeiro livro, Impressões e Paisagens, recorre a pedaços da sua experiência da infância vivida entre lavradores e gente do mar, para esboçar quadros da vida dos camponeses e dos pescadores. Em 1886, José Pereira de Sampaio Bruno publica o ensaio Geração Nova, no qual contesta o realismo-naturalismo e o positivismo de Auguste Comte e defende os valores do moderno romance russo, exaltando particularmente Fedor Dostoievski: «o novo romance é um mundo moderno, uma concorrência cognitiva, representa uma crise moral.», diz Sampaio Bruno no seu ensaio. E esta parece ser a bússola por onde Brandão orienta as suas primeiras navegações.

Mas nem só das memórias da infância e da juventude e das influências de Bruno, Fialho e Eça, construiu o seu primeiro livro, pois numa carta a Alberto Allen Bramão, um dos seus companheiros das lides jornalísticas (que viria a ser deputado e secretário particular do penúltimo chefe de governo do regime monárquico, Ernesto Hintze Ribeiro), diz-lhe que foi também das discussões que em tempos tiveram sobre Arte que aqueles contos nasceram. Quando, sob o pseudónimo colectivo de Luís Borja subscreve o panfleto Os Nefelibatas, o seu decadentista arsenal literário e ideológico continua a ser sensivelmente o mesmo: «Anarquistas das Letras, petroleiros do Ideal, desfraldando ao vento sobre os uivos e os apupos dos sebastianismos retóricos o estandarte de seda branca da Arte Moderna.»

Em 1896, ainda sob a influência bruniana atrás referida, misturando textos de ficção com outros de ideias que viera produzindo desde 1890, publica História Dum Palhaço. Em 1899 representa-se no Teatro de D. Maria II, a peça A Noite de Natal, que escreve de colaboração com Júlio Brandão Em 1901 sai um outro seu panfleto, O Padre. Em 1902, sobe à cena, desta vez no D. Amélia (actual São Luís) o drama de sua autoria O Maior Castigo. Em 1903 publica mais uma obra de ficção, A Farsa, que dedica «Ao Grande Poeta Guerra Junqueiro», romance de que nos fica a imorredoira personagem da Candidinha; em 1906, é a vez de Os Pobres (um dolorismo redentor), com um prefácio de Guerra Junqueiro, onde o poeta diz «Não vejo diante de mim um poema estéril, obra dos sentidos, da imaginação e da volúpia. Vejo um acto profundo, espontâneo de imensidade religiosa. O homem que se confessa abala-me e deslumbra-me.» Figuras como o Gebo e o Gabiru, surgem-nos neste conjunto de ficções em toda a grandeza da sua dimensão humana. Na sua edição de 1984, este livro contém um esclarecedor «estudo-introdutório» escrito por Vítor Viçoso (esclarecedor não só sobre este livro, mas sim sobre toda a obra de Raul Brandão).

Todavia, será a partir de 1912 que irão surgir as suas obras de maior fôlego e significado. É neste ano que se publica a sua obra historiográfica El-Rei Junot, dedicado a sua mulher, em cuja introdução proclama: «A história é a dor, a verdadeira história é a dos gritos.»; em 1914, sairá, também de raiz histórica, 1817: A Conspiração de Gomes Freire 6, dedicado à memória de Maximiliano de Azevedo, escritor, jornalista e investigador, que foi director do Arquivo Histórico Militar. A propósito destas incursões de Brandão no campo da historiografia, Victor de Sá, no seu excelente prefácio à edição de 1988, salienta: «É certo que Raul Germano Brandão [...] não foi propriamente um historiador, nem nunca se terá pretendido como tal. A sua obra literária, de intenso humanismo e entranhada interioridade, está aí para o demonstrar.» [...] «No caso de Raul Brandão importa sobretudo considerar o estado em que se encontrava a historiografia portuguesa no início da República, cuja mudança de regime fugazmente lhe despertou a veia historicista.» A visão dolorosa da realidade nacional impôs-lhe a intervenção num terreno que, em princípio, nunca seria o seu.

Ainda em 1917, publicará aquele que é na opinião de muitos a sua mais bela obra - o romance Húmus. No dizer de José Régio, é um romance moderno na medida em que a sua escrita corresponde ao «espírito moderno» [...] «assimilável ao espírito romântico – tomando os termos na sua mais ampla acepção.»7 Em 1919 publicar-se-á o primeiro volume das suas Memórias, com o segundo a ser editado em 1925 (ou 1926), e o terceiro (Vale de Josafat) a sair postumamente, em 1933. Esta obra, tão reveladora do permanente sentimento humanista do escritor, fala bastante mais dos outros do que de si mesmo. Na sua tertúlia de amigos, ouvia, registava na sua memória e na sua sensibilidade fotográficas os pormenores mais impressivos dessas conversas, tomava depois notas em jeito de diário e lega-nos, desse modo, uma das obras mais notavelmente elucidativas sobre o que foram, no campo social, moral, político e cultural, essas primeiras três agitadas décadas do século XX. Tempo de revoltas e de revoluções, de regicídios e de golpes militares; em suma, de convulsões profundas.

No ano de 1923 dará à estampa outra das suas mais belas obras, Os Pescadores, resultado quer do seu conhecimento da vida do mar, quer de uma viagem que faz aos Açores e de um percurso que realiza por praias e por aldeias de pescadores. No prefácio da edição de 1988, José Cardoso Pires salienta: «Um escritor que registou a paisagem com esta inquietação e com estas referências não cabe nas molduras que alguns leitores apressadamente ainda pretendem impor-lhe com veneração. A sua leitura do país vai mais longe, tem outro futuro - projecta-se na actualidade do nosso viver e da nossa escrita.»

As Ilhas Desconhecidas, livro publicado em 1926, insere-se dentro da mesma linha de evocação de mitos locais e de descrição de quadros da faina piscatória. Neste mesmo ano de 1923 publica três peças de teatro - o Doido e a Morte, O Rei Imaginário e o Gebo e a Sombra. Em 1929, será editada outra das suas obras mais destacadas – O Avejão. O Pobre de Pedir, na linha confessional e autobiográfica das Memórias, apenas será publicado postumamente em 1931. Na edição de 1984, além de uma apresentação expressamente escrita por Guilherme de Castilho (que viria a falecer em 1987), inclui-se ainda um valioso estudo introdutório de Vítor Viçoso. Um comovido texto de Maria Angelina Brandão, vindo da edição original, integra ainda este volume. Também com edição póstuma, sai em 1984, precedida de uma exaustiva introdução de Túlio Ramires Ferro, a sua obra Os Operários.

Constituiria uma grave omissão falar da obra de Raul Brandão sem referir a «Casa do Alto», situada na Nespereira (Guimarães), uma aldeia minhota enterrada entre pinheirais e serranias, para onde, já casado foi viver em 1903. Ela desempenhou um importante papel na sua vida de escritor, pois ali, na sua torre, produziu textos como El-rei Junot, A Conspiração de 1817, Húmus, A Farsa, os dois primeiros volumes das Memórias, Os Pescadores, As Ilhas Desconhecidas e o Portugal Pequenino, escrito em colaboração com Maria Angelina. Diz nas Memórias: «A certa altura da vida tive a impressão de que me despenhara num mundo de espectros. A face humana meteu-me medo pelo que nela descobria de repulsivo e de grotesco. Fugi para poder viver [...] Fugimos para a aldeia... a nossa casa fica a meia encosta da colina. Por trás, o mar verde dos pinheiros, em frente, os montes solitários. Este cantinho rústico criei-o eu palmo a palmo.» Quando em 1912 passou à situação de reforma (com 45 anos), todos os Invernos desciam, ele e Maria Angelina, até Lisboa em busca do clima mais ameno. Na capital recarregava também a sua bagagem de informação, convivendo intimamente com uma grande parte da elite intelectual do País. Na Casa do Alto trabalhava depois esse material registado pela sua sensibilidade fotográfica.

Diga-se ainda que à grande qualidade da sua obra não corresponde, como tantas vezes acontece, uma adesão do público e, consequentemente, dos editores. Guilherme de Castilho no seu prefácio à edição de 1984 de O Pobre de Pedir, chama a atenção para este desencontro, infelizmente tão frequente, entre escritor, editor e leitores: «Só aos quarenta e cinco anos, em 1912, com vinte e dois anos de carreira literária e depois de sete obras publicadas, cada uma de diferente paternidade editorial, é que Raul Brandão encontra o primeiro editor que vai publicar com alguma continuidade obras suas: A Renascença Portuguesa. Aqui permanecerá até 1923, ano em que pela mão de Aquilino, passa a ser editado pela Bertrand. A Seara Nova, em 1926, será a chancela editorial com que serão lançados os livros da última fase da sua vida.»9

 Um retrato, uma biografia? - Leia-se a sua obra 

 «Silhueta de pirata nostálgico, tesourando o chão a passadas sonâmbulas», com estas palavras se autodefiniu Raul Brandão. Sobre o seu aspecto físico, ficaram-nos fotografias suas, retratos executados por António Carneiro e por Columbano. Ficaram-nos também muitos testemunhos dos que o conheceram. E, sobretudo, as suas Memórias. Feita esta descrição sucinta da sua biobliografia pouco mais há talvez a dizer num registo de baixa frequência sobre este grande vulto da literatura portuguesa (o que significa que quase tudo fica por dizer). E aqui voltamos a dar a palavra ao diplomata e escritor presencista Guilherme de Castilho, autor de um dos mais inteligentes estudos biográficos sobre Brandão (Raul Brandão - Vida e Obra, Lisboa, 1979): «A história da vida de Raul Brandão [...] é, pode dizer-se, a história da sua obra. A alguém que lhe pediu a sua biografia, respondeu: ‘Podia dizer-lhe quando nasci, quando comecei a escrever, etc. Considero tudo isso inútil. O importante seria dizer-lhe quando o fantasma se intrometeu na minha vida. Nem sei ao certo... [...] Da minha vida não posso avançar mais nada, além do que aí está em farrapos nalguns dos meus volumes...’»

Terminamos com as palavras com que, em Janeiro de 1918, ele dá início às suas Memórias: «Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra.»

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Biografia rápida

1867: Em 12 de Março nasce na Foz do Douro Raul Germano Brandão. Neste mesmo ano, nascem outros dois grandes vultos da literatura portuguesa – António Nobre e Camilo Pessanha. Na cidade do Porto, para onde vai viver ainda criança, completa o curso liceal no Colégio de São Carlos e frequenta como ouvinte o Curso Superior de Letras na Universidade. 1885: Colabora na publicação liceal O Andaluz.

1888: Inicia a sua carreira militar, matriculando-se na Escola do Exército.
1889: Acompanha os manifestos simbolistas das publicações Boémia Nova e Os Insubmissos.
1890: Publica Impressões e Paisagens, uma colectânea de contos naturalistas.
1891: De parceria com Júlio Brandão, publica Vida de Santos, Virgem Maria (Mãe de Deus) e Santa Isabel (Rainha de Portugal).
1892: Colabora no panfleto de raiz anarquista Os Nefelibatas.
1893: Em 27 de Janeiro inicia a sua colaboração regular no Correio da Manhã.
1894: Começa a escrever textos para a Revista de Hoje. Colabora também na Revista de Portugal. É ainda redactor de O Dia e de A República.
1896: É promovido a alferes e colocado no Regimento de Infantaria nº, 20, de Guimarães. Conhece Maria Angelina, a futura companheira de toda a sua vida. É editada a sua obra de ficção História Dum Palhaço. Columbano Bordalo Pinheiro pinta o seu retrato.
1897: Casa, em Março, com Maria Angelina.
1899: No teatro de D. Maria II estreia-se o drama em três actos A Noite de Natal, que escreve em parceria com Júlio Brandão.
1901: É promovido a tenente e transferido para Lisboa. Publica o panfleto O Padre.
1902: Sobe à cena no teatro D. Amélia o seu drama em três actos O Maior Castigo.
1903: Vai morar para a «Casa do Alto», numa quinta situada nas proximidades de Guimarães. Publica-se A Farsa.
1906: Em Maio, faz uma grande viagem pela Europa acompanhado por sua mulher – visita Espanha, França, Suíça e Inglaterra. Sai a edição de Os Pobres, com prefácio de Guerra Junqueiro.
1910: Em 23 de Julho morre seu pai e, três semanas depois, sua mãe.
1911: Termina a sua carreira militar, sendo reformado no ano seguinte com o posto de major.
1912: Durante os Invernos, passa a ter residência em Lisboa. Edição de El-Rei Junot. Publica em A Águia um artigo sobre Fialho de Almeida.
1914: É publicada a obra A Conspiração de 1817: Quem Matou Gomes Freire.
1915: Na revista Renascença publica-se O Cerco do Porto, trabalho do coronel Owen, de que escreve o prefácio e as notas.
1917: Publicação de Húmus.
1919: Sai o primeiro volume das Memórias. A obra completar-se-á com o terceiro volume (Vale de Josafat), que será publicado postumamente, em 1933.
1921: É um dos fundadores da revista «de doutrina e crítica» Seara Nova.
1922: Colabora na edição Eça de Queirós – In Memoriam, organizada por Eloi do Amaral e Cardoso Martha.
1923: É eleito como sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. São editadas algumas das suas obras capitais - O Rei Imaginário, Os Pescadores, as peças de teatro O Gebo e a Sombra e O Doido e a Morte. No quadro da remodelação da Seara Nova, passa, com António Sérgio, a fazer parte da direcção da revista.
1926: Publica As Ilhas Desconhecidas. Sai uma nova versão da obra de ficção publicada em 1896 (História Dum Palhaço), agora sob o titulo A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore.
1927: Columbano pinta o retrato de Raul e Angelina Brandão. De colaboração com Teixeira de Pascoais, publica Jesus Cristo em Lisboa; Edita-se o monólogo teatral Eu Sou Um Homem de Bem.
1929: Edição do texto dramático O Avejão.

1930: Em colaboração com sua mulher Maria Angelina Brandão, publica a narrativa para crianças Portugal Pequenino. Morre em Lisboa, no dia 5 de Dezembro, com 63 anos.
1931: É postumamente editada a obra O Pobre de Pedir.

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