segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Raul Brandão, um «rasto visível» na literatura portuguesa do século XX

É muito difícil encontrar um escritor português cuja obra, como a de Raul Brandão, tenha influenciado de forma tão evidente a escrita de tantos outros escritores das gerações e das escolas literárias que à sua se seguiram. A matriz positivista comtiana cujas pegadas encontramos também em escritores portugueses anteriores e posteriores, como Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais, Fernando Pessoa, para não falar na grande maioria dos escritores da chamada Geração de 70 e, depois, a dimensão humanitarista por ele assimilada, sobretudo, através da atenta leitura dos grandes ficcionistas russos Tolstoi, Dostoievski e Gorki, irá ter eco, século XX adentro, no grupo da Presença – José Régio, Branquinho da Fonseca, António Navarro, João Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt, Adolfo Casais Monteiro, Miguel Torga, Fausto José... e evidenciar a sua semente noutras obras posteriores, como a de Ferreira de Castro, José-Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira, Manuel Mendes, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, José Cardoso Pires, Herberto Hélder, para referir apenas alguns dos casos mais relevantes. Na realidade, «poucos autores portugueses deixaram até nós um rasto tão visível», como disse a seu respeito Óscar Lopes.

Pertencente a uma geração literária fortemente influenciada pelo Simbolismo-Decadentismo que de França nos chegava, escritores cujas obras iriam iluminar o século seguinte, fazendo parte daquela a que também chamaram a «geração de 90», da qual fizeram parte, entre outros, Eugénio de Castro, Camilo Pessanha, Wenceslau de Morais, António Patrício, António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Justino de Montalvão, D. João de Castro, todavia, Raul Brandão seria, entre todos eles, o que, rompendo com esse decadentismo finissecular, mais raízes veio a deixar na literatura das décadas futuras. A sua obra não terá por certo sido das mais vastas, contudo é das mais ricas na gama de tonalidades humanas das suas personagens e até mesmo nas hábeis dissonâncias que soube criar entre o trágico e o grotesco das situações ficcionais em que as envolveu. Talvez por isso, por essa modernidade latente na sua técnica efabulatória, tenha funcionado como um farol, como uma luminosa referência para as gerações seguintes.

A infância e a adolescência

Filho e neto de gente do mar, «o mar será também para ele um apelo sempre presente».1 A infância passa-a nesse ambiente que virá a descrever de forma tão eloquente quanto comovida em Os Pescadores. Nas suas Memórias descreve: «Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto do Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele.» [...] «O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo, o que sei das árvores, da ternura, da cor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada».

Na escola que, sob a direcção das senhoras Militoas, funcionava por essa época na Foz Velha, aprende as primeiras letras. Devido a incidentes da sua saúde frágil interrompe os estudos por dois anos, indo depois com os pais para o Porto, onde inicia o curso liceal no Colégio de São Carlos. Sobre este período da sua vida, recorremos de novo às suas Memórias: «Inverno. Luz turva. Um casarão enorme no alto da Rua Fernandes Tomás dentro de uma cerca calcinada... Entro: sala enorme, cheia de petizes dominados pelo mesmo sentimento de terror - 8×7? - 8×7? - Entre as bancadas passeia um homem atarracado e grosso de cabelo encarapinhado de mulato, botas de montar e a palmatória metida no cano das botas: - 8×7? - E o seu vozeirão mete medo. - Eu tinha todos os dias cólicas horríveis, antes de entrar no colégio de S. Carlos, e foi ali que principiei a estragar os meus nervos e a amargar a vida. [...] Foi ali», dirá também «que principiei a estragar os meus nervos e a amargurar a vida; há quem tenha saudades do colégio: eu sonho às vezes com ele e acordo sempre passado de terror...»3 Porém, nem tudo terá sido tão sinistro como a aprendizagem da tabuada, pois é naquela escola que Brandão desperta para as letras – no Andaluz. Em 1888 completa o curso liceal e, no ano lectivo seguinte, começa a frequentar como ouvinte o Curso Superior de Letras da Universidade do Porto.

A carreira militar

Entretanto, é promulgada a obrigatoriedade da prestação do serviço militar e Raul assenta praça, matriculando-se depois na Escola do Exército. Recorramos de novo às suas Memórias: «Na Escola do Exército ensinavam, no meu tempo, coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender.» Na realidade, a carreira militar não se adequava à sua natureza pacífica e contemplativa. No registo das provas que presta, em 1893, no Regimento de Infantaria nº. 6, do Porto, figuram as seguintes elucidativas classificações: «Tiro: atirador de 2ª classe; ginástica: medíocre; esgrima: medíocre.» No entanto, segundo parece, a vontade do pai e o desejo de sua mãe de o ver garbosamente uniformizado, prevaleceram.

De acordo com elementos constantes da sua folha de serviço, além de algum tempo de quartel, uma grande parte da sua vida de oficial decorreu imerso em papelada, em trabalho meramente burocrático. Quando, já na idade madura, faz um balanço da sua vida militar, diz-nos: «Durante o tempo que fui tropa vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel (era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigo para o outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior...»4

A carreira jornalística

Raul Brandão começa a sua actividade jornalística antes mesmo de publicar o seu primeiro livro, pois inicia-a nos bancos do colégio de São Carlos, escrevendo em modestos jornais e panfletos escolares, como é o caso de O Andaluz, revista que os alunos do Colégio publicam «a favor das vítimas dos terramotos de Andaluzia», e onde colaboram, além de Raul, outros estudantes que viriam a dar que falar, tais como João de Lemos, Trindade Coelho e José Leite de Vasconcelos. É o primeiro texto literário que se lhe conhece – «Bendita!», clama, exaltando a caridade como sendo a mais bendita das virtudes.

Porém, é quando, no ano de 1888, vem para Lisboa como aluno da Escola do Exército, que começa a publicar, agora com algum carácter profissional, textos em revistas e jornais. Assim, colabora em O Imparcial, no Correio da Noite, na Revista Ilustrada, no Novidades, no Correio da Manhã, jornal fundado por Pinheiro Chagas, escritor com o qual Raul Brandão ainda chega a conviver, em O Dia, dirigido por José Maria Alpoim, na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós (e onde colaboram autores como Oliveira Martins, Antero de Quental, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Magalhães Lima, Leite de Vasconcelos, Malheiro Dias, Fialho de Almeida...), na Revista de Hoje, por si fundada e onde escreverá até 1896, da qual será co-director com Júlio Brandão (Esclareça-se que Raul Brandão, apesar da coincidência dos apelidos, não é seu familiar). É ainda colaborador assíduo de jornais como O Século, Diário de Notícias, Portugal-Brasil, etc., etc. Em 1912, relaciona-se com Teixeira de Pascoais e embora não coincida ideologicamente com os princípios da Renascença Portuguesa e do saudosismo, colabora em A Águia com um importante artigo sobre Fialho de Almeida, falecido em 4 de Março do ano anterior. Com Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Azeredo Perdigão, Câmara Reis e outros, lança a revista de «doutrina e crítica» Seara Nova que, como se sabe, irá desempenhar, ao longo das décadas seguintes, um papel importante na vida cultural e política do País.

Esta sua grande paixão pelo jornalismo, actividade que foi exercendo, como amador e como profissional, ao longo de quase toda a sua vida, constitui, como salienta Guilherme de Castilho, na já citada biografia que acompanha a edição das Memórias, «a tarimba [...] que lhe proporcionou a oportunidade de contactar com um mundo cuja existência até então ignorava: o mundo da miséria, do vício e do crime. Os seus inquéritos de jovem repórter, nos hospitais, nas cadeias, nos prostíbulos abriram novas perspectivas no espírito e na consciência do escritor.»

Raul Brandão escritor

Falemos então deste escritor forjado não só pela sua grande sensibilidade como também pela sua experiência de vida – a escolar, a jornalística, a militar... A obra de todos os escritores é sempre, de uma ou de outra forma, o produto das suas respectivas vivências. Raul Brandão, porém, é um homem que baseia os seus livros em consistentes alicerces, construídos com a argamassa das recordações que foi acumulando, memórias de seres humanos com os quais se foi cruzando ao longo da sua existência. As suas personagens, a Candidinha, o Gabiru, o Gebo, a Joana, a Luísa, o Ziem, o Vaz, são arrancadas à vida real, sentimo-las palpitar, na sua carne de papel e tinta – convivem e interagem connosco. Pelo princípio da derradeira década do século XIX, Raul fazia parte da imensa hoste de escritores seduzidos pelo Simbolismo vivendo um período dominado pelo nefelibatismo.

Porém, a preocupação humanista pela sorte dos humilhados e ofendidos, a condenação da exploração do homem pelo homem, a denúncia das chagas sociais feita um pouco à maneira dos seus mestres russos, constitui a nota dominante da sua produção literária, surgindo sempre, sob as diversas camadas sedimentares que vai acumulando ao longo da sua evolução como escritor, como visão estruturante e unificadora da sua obra – «Por cada homem que amontoa ouro há cem criaturas morrendo de desespero», diz em Os Pobres. São também bastante elucidativas as palavras com que termina o romance Húmus: «Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitectura de ferro. [...] É com palavras que são apenas sons que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.»

Quando, em 1890, ainda sob a influência das ideias filosóficas, políticas, sociológicas e religiosas de Sampaio Bruno bem como do estilo ironicamente acutilante de Fialho e da prosa requintada, mas ferina, de Eça (para não falar de uma técnica narrativa que algo terá bebido em Camilo Castelo Branco), publica o seu primeiro livro, Impressões e Paisagens, recorre a pedaços da sua experiência da infância vivida entre lavradores e gente do mar, para esboçar quadros da vida dos camponeses e dos pescadores. Em 1886, José Pereira de Sampaio Bruno publica o ensaio Geração Nova, no qual contesta o realismo-naturalismo e o positivismo de Auguste Comte e defende os valores do moderno romance russo, exaltando particularmente Fedor Dostoievski: «o novo romance é um mundo moderno, uma concorrência cognitiva, representa uma crise moral.», diz Sampaio Bruno no seu ensaio. E esta parece ser a bússola por onde Brandão orienta as suas primeiras navegações.

Mas nem só das memórias da infância e da juventude e das influências de Bruno, Fialho e Eça, construiu o seu primeiro livro, pois numa carta a Alberto Allen Bramão, um dos seus companheiros das lides jornalísticas (que viria a ser deputado e secretário particular do penúltimo chefe de governo do regime monárquico, Ernesto Hintze Ribeiro), diz-lhe que foi também das discussões que em tempos tiveram sobre Arte que aqueles contos nasceram. Quando, sob o pseudónimo colectivo de Luís Borja subscreve o panfleto Os Nefelibatas, o seu decadentista arsenal literário e ideológico continua a ser sensivelmente o mesmo: «Anarquistas das Letras, petroleiros do Ideal, desfraldando ao vento sobre os uivos e os apupos dos sebastianismos retóricos o estandarte de seda branca da Arte Moderna.»

Em 1896, ainda sob a influência bruniana atrás referida, misturando textos de ficção com outros de ideias que viera produzindo desde 1890, publica História Dum Palhaço. Em 1899 representa-se no Teatro de D. Maria II, a peça A Noite de Natal, que escreve de colaboração com Júlio Brandão Em 1901 sai um outro seu panfleto, O Padre. Em 1902, sobe à cena, desta vez no D. Amélia (actual São Luís) o drama de sua autoria O Maior Castigo. Em 1903 publica mais uma obra de ficção, A Farsa, que dedica «Ao Grande Poeta Guerra Junqueiro», romance de que nos fica a imorredoira personagem da Candidinha; em 1906, é a vez de Os Pobres (um dolorismo redentor), com um prefácio de Guerra Junqueiro, onde o poeta diz «Não vejo diante de mim um poema estéril, obra dos sentidos, da imaginação e da volúpia. Vejo um acto profundo, espontâneo de imensidade religiosa. O homem que se confessa abala-me e deslumbra-me.» Figuras como o Gebo e o Gabiru, surgem-nos neste conjunto de ficções em toda a grandeza da sua dimensão humana. Na sua edição de 1984, este livro contém um esclarecedor «estudo-introdutório» escrito por Vítor Viçoso (esclarecedor não só sobre este livro, mas sim sobre toda a obra de Raul Brandão).

Todavia, será a partir de 1912 que irão surgir as suas obras de maior fôlego e significado. É neste ano que se publica a sua obra historiográfica El-Rei Junot, dedicado a sua mulher, em cuja introdução proclama: «A história é a dor, a verdadeira história é a dos gritos.»; em 1914, sairá, também de raiz histórica, 1817: A Conspiração de Gomes Freire 6, dedicado à memória de Maximiliano de Azevedo, escritor, jornalista e investigador, que foi director do Arquivo Histórico Militar. A propósito destas incursões de Brandão no campo da historiografia, Victor de Sá, no seu excelente prefácio à edição de 1988, salienta: «É certo que Raul Germano Brandão [...] não foi propriamente um historiador, nem nunca se terá pretendido como tal. A sua obra literária, de intenso humanismo e entranhada interioridade, está aí para o demonstrar.» [...] «No caso de Raul Brandão importa sobretudo considerar o estado em que se encontrava a historiografia portuguesa no início da República, cuja mudança de regime fugazmente lhe despertou a veia historicista.» A visão dolorosa da realidade nacional impôs-lhe a intervenção num terreno que, em princípio, nunca seria o seu.

Ainda em 1917, publicará aquele que é na opinião de muitos a sua mais bela obra - o romance Húmus. No dizer de José Régio, é um romance moderno na medida em que a sua escrita corresponde ao «espírito moderno» [...] «assimilável ao espírito romântico – tomando os termos na sua mais ampla acepção.»7 Em 1919 publicar-se-á o primeiro volume das suas Memórias, com o segundo a ser editado em 1925 (ou 1926), e o terceiro (Vale de Josafat) a sair postumamente, em 1933. Esta obra, tão reveladora do permanente sentimento humanista do escritor, fala bastante mais dos outros do que de si mesmo. Na sua tertúlia de amigos, ouvia, registava na sua memória e na sua sensibilidade fotográficas os pormenores mais impressivos dessas conversas, tomava depois notas em jeito de diário e lega-nos, desse modo, uma das obras mais notavelmente elucidativas sobre o que foram, no campo social, moral, político e cultural, essas primeiras três agitadas décadas do século XX. Tempo de revoltas e de revoluções, de regicídios e de golpes militares; em suma, de convulsões profundas.

No ano de 1923 dará à estampa outra das suas mais belas obras, Os Pescadores, resultado quer do seu conhecimento da vida do mar, quer de uma viagem que faz aos Açores e de um percurso que realiza por praias e por aldeias de pescadores. No prefácio da edição de 1988, José Cardoso Pires salienta: «Um escritor que registou a paisagem com esta inquietação e com estas referências não cabe nas molduras que alguns leitores apressadamente ainda pretendem impor-lhe com veneração. A sua leitura do país vai mais longe, tem outro futuro - projecta-se na actualidade do nosso viver e da nossa escrita.»

As Ilhas Desconhecidas, livro publicado em 1926, insere-se dentro da mesma linha de evocação de mitos locais e de descrição de quadros da faina piscatória. Neste mesmo ano de 1923 publica três peças de teatro - o Doido e a Morte, O Rei Imaginário e o Gebo e a Sombra. Em 1929, será editada outra das suas obras mais destacadas – O Avejão. O Pobre de Pedir, na linha confessional e autobiográfica das Memórias, apenas será publicado postumamente em 1931. Na edição de 1984, além de uma apresentação expressamente escrita por Guilherme de Castilho (que viria a falecer em 1987), inclui-se ainda um valioso estudo introdutório de Vítor Viçoso. Um comovido texto de Maria Angelina Brandão, vindo da edição original, integra ainda este volume. Também com edição póstuma, sai em 1984, precedida de uma exaustiva introdução de Túlio Ramires Ferro, a sua obra Os Operários.

Constituiria uma grave omissão falar da obra de Raul Brandão sem referir a «Casa do Alto», situada na Nespereira (Guimarães), uma aldeia minhota enterrada entre pinheirais e serranias, para onde, já casado foi viver em 1903. Ela desempenhou um importante papel na sua vida de escritor, pois ali, na sua torre, produziu textos como El-rei Junot, A Conspiração de 1817, Húmus, A Farsa, os dois primeiros volumes das Memórias, Os Pescadores, As Ilhas Desconhecidas e o Portugal Pequenino, escrito em colaboração com Maria Angelina. Diz nas Memórias: «A certa altura da vida tive a impressão de que me despenhara num mundo de espectros. A face humana meteu-me medo pelo que nela descobria de repulsivo e de grotesco. Fugi para poder viver [...] Fugimos para a aldeia... a nossa casa fica a meia encosta da colina. Por trás, o mar verde dos pinheiros, em frente, os montes solitários. Este cantinho rústico criei-o eu palmo a palmo.» Quando em 1912 passou à situação de reforma (com 45 anos), todos os Invernos desciam, ele e Maria Angelina, até Lisboa em busca do clima mais ameno. Na capital recarregava também a sua bagagem de informação, convivendo intimamente com uma grande parte da elite intelectual do País. Na Casa do Alto trabalhava depois esse material registado pela sua sensibilidade fotográfica.

Diga-se ainda que à grande qualidade da sua obra não corresponde, como tantas vezes acontece, uma adesão do público e, consequentemente, dos editores. Guilherme de Castilho no seu prefácio à edição de 1984 de O Pobre de Pedir, chama a atenção para este desencontro, infelizmente tão frequente, entre escritor, editor e leitores: «Só aos quarenta e cinco anos, em 1912, com vinte e dois anos de carreira literária e depois de sete obras publicadas, cada uma de diferente paternidade editorial, é que Raul Brandão encontra o primeiro editor que vai publicar com alguma continuidade obras suas: A Renascença Portuguesa. Aqui permanecerá até 1923, ano em que pela mão de Aquilino, passa a ser editado pela Bertrand. A Seara Nova, em 1926, será a chancela editorial com que serão lançados os livros da última fase da sua vida.»9

 Um retrato, uma biografia? - Leia-se a sua obra 

 «Silhueta de pirata nostálgico, tesourando o chão a passadas sonâmbulas», com estas palavras se autodefiniu Raul Brandão. Sobre o seu aspecto físico, ficaram-nos fotografias suas, retratos executados por António Carneiro e por Columbano. Ficaram-nos também muitos testemunhos dos que o conheceram. E, sobretudo, as suas Memórias. Feita esta descrição sucinta da sua biobliografia pouco mais há talvez a dizer num registo de baixa frequência sobre este grande vulto da literatura portuguesa (o que significa que quase tudo fica por dizer). E aqui voltamos a dar a palavra ao diplomata e escritor presencista Guilherme de Castilho, autor de um dos mais inteligentes estudos biográficos sobre Brandão (Raul Brandão - Vida e Obra, Lisboa, 1979): «A história da vida de Raul Brandão [...] é, pode dizer-se, a história da sua obra. A alguém que lhe pediu a sua biografia, respondeu: ‘Podia dizer-lhe quando nasci, quando comecei a escrever, etc. Considero tudo isso inútil. O importante seria dizer-lhe quando o fantasma se intrometeu na minha vida. Nem sei ao certo... [...] Da minha vida não posso avançar mais nada, além do que aí está em farrapos nalguns dos meus volumes...’»

Terminamos com as palavras com que, em Janeiro de 1918, ele dá início às suas Memórias: «Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra.»

[in http://www.vidaslusofonas.pt]

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