sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Entrevista a Raul Brandão


[Na sua edição de 7 de Dezembro de 1930, o jornal republicano vimaranense A Velha Guarda, noticiava a morte Raul Brandão, desaparecido dois dias antes, e publicava uma entrevista do poeta Américo Durão ao escritor, que fala, entre outros assuntos, do seu processo de trabalho.]

Raul Brandão, o novelista, Eugénio de Castro, o poeta, tão diferentes e tão distantes, ocupam hoje os dois lugares mais eminentes da literatura portuguesa. A obra de Eugénio de Castro é serena e bela como os mármores de Atenas. A de Raul Brandão mais convulsa e abstracta. As figuras dos romances deste grande escritor são irreais, simbólicas. Ao abrirmos um dos seus livros, dir-se-ia mergulharmos num mundo de fantasmas. Das suas páginas desprende-se uma vida espectral, de sonho. E, no entanto, algumas as suas personagens palpitam de vida interior, todos nós as conhecemos. Acotovelamo-las na rua. Qual de nós não encontrou ainda no seu caminho a Candidinha, de falas mansas e coração cheio do ódio que as humilhações e desprezos, gota a gota lá verteram? E o pobre K. Maurício? E o Gabiru? E o coveiro, cuja crosta de inveterado cinismo se rompe, deixando escapar em cataratas a dor e a revolta, quando a morte na sua ronda cega, insensível, vem bater à sua porta para levar-lhe a filha? E a mulher a dias, mísero farrapo de humildade e sacrifício, que passa na vida sem a noção de que a vida lhe pertence a ela também? E os seus ladrões e prostitutas, que são apenas alma?

Dir-se-ia que Raul Brandão, como Prometeu, roubou aos Deuses o fogo com que havia de acender em estrelas a miséria daquele humano barro envilecido. Devia ser interessante descobrir o processo usado pelo escritor para dar às suas criações aquela forma assim impalpável e viva: ouvi-lo sobre os homens, literatos e artistas do seu tempo. O que pensaria dos novos o Mestre genial do Húmus e dos Pescadores? Que prosadores e poetas mereceriam a honra da sua preferência? E recordamo-nos da admiração reverente com que Aquilino Ribeiro lhe fala. Mestre -diz Aquilino ao dirigir-se ao grande novelista da História de um Palhaço. Assim dita a palavra Mestre enobrece Raul Brandão e o magnífico prosador da Via Sinuosa.


Como trabalha o escritor

Pedimos-lhe uma entrevista nesse sentido: mas Raul Brandão interrompe-nos surpreendido e rápido:
Eu falar-lhe dos novos, de prosadores, de artistas... Você está doido! Sei lá alguma coisa disso…

Aguardámos, sorrindo, que a maré passasse e foi o próprio Raul Brandão que, amavelmente, se nos dirigiu:
Porque não vem você passar oito dias comigo e minha mulher à nossa casa do Norte? Ali ver-me-á trabalhar e poderá escrever alguma coisa interessante. Não quer vir? Porquê?

Não... Não posso agora sair de Lisboa.
Pois é, pena. Olhe, então, se quiser, apareça numa destas tardes lá por casa. Sabe onde moro? Ali, a S. Domingos, à Lapa…

Ficou combinado, iríamos a sua casa.
E no último domingo, às onze e meia batíamos-lhe à porta. Foi o próprio escritor quem veio abrir, sorridente:
Você é implacável, ó Américo Durão. Antão o que quer? Diga lá o quer você de mim?

Já que não deseja referir-se aos outros, fale-nos de si, explique-nos a sua maneira de trabalhar.
Mas eu tenho lá maneira de trabalhar! Você tem cada pergunta...

Exalta-se novamente, o seu olhar de um azul nevoento acende-se, purifica-se, torna-se límpido e luminoso. Dá duas voltas rápidas na casa, ri como uma criança. Mas é evidente que tem um grande desejo de atender o nosso pedido. Depressa se acalma, e explica-nos:
Oiça. Se me ocorre o esboço duma figura, uma observação, um detalhe, tomo um apontamento, uma nota... Depois, aguardo o momento oportuno, e quando ele chega, minha mulher senta-se aí a essa secretária e escreve o que eu, a passear dum lado para o outro, vou compondo e lhe dito. Aqui tem... Agora o meu processo de trabalho... Eu sei lá! Essas coisas vêm-me à cabeça e às vezes sucede não ficarem mal...

Diz isto numa grande simplicidade, como que envergonhado de falar de si, nervosamente, com os olhos acesos e um riso, alto, infantil, que contrasta singularmente com a sua elevada estatura e com os seus cabelos brancos. Abre uma gaveta da secretária e mostra-nos um grande rolo desordenado de folhas de papel, cobertos de uma caligrafia fina e veloz:
Vê… É o manuscrito das minhas Memórias, o 3.° volume. Foi minha mulher quem escreveu tudo isto.

O que haverá ali, naquele rolo de papéis à volta dos quais, conhecida a sinceridade e a irreverência do escritor, se agitam já tantas curiosidades e receios? Hesitamos em perguntar-lho e não nos atrevendo a fazê-lo, damos um novo rumo à entrevista:

Que idade tinha o senhor Raul Brandão quando começou a escrever?
A dizer-lhe a verdade, já me não lembro. E depois, que interesse pode isso ter para os seus leitores? Foi na Revista de Hoje, onde colaboraram António Nobre, Alberto de Oliveira e Junqueiro, que saíram as minhas primeiras coisas... Eu acompanhava, então, muito, com Alberto de Oliveira e Nobre...

Raul Brandão não está dando; uma entrevista. Conversa connosco, animado, passeando, dum lado para o outro, como se estives se ditando a sua mulher.

O primeiro livro

O meu primeiro livro Impressões e Paisagens publiquei-o no Porto... Eu lhe digo, espere... Foi em 1890. Seguiu-se-lhe a História dum Palhaço, em 1896, editado pela Parceria António Maria Pereira.

Estive quase a dizer-lhe que ainda há uma dúzia de anos comprei naquela livraria um exemplar novo da primeira edição da História dum Palhaço, por meia dúzia de tostões. Mas considerando a tempo, calei-me. Raul Brandão voltara a falar-nos de António Nobre. Dos passeios que davam juntos pela Foz, por Leça, até à Boa Nova. Pelo milagre da sua palavra evocadora eu sentia entre nós a presença do poeta. Subitamente, o cronista do El-rei Junot sorriu a uma lembrança e, surpreendendo uma interrogação no nosso olhar, prosseguiu em voz alta:
Estou a lembrar-me dum artigo que publiquei sobre Camilo e Eça. Terminava por dizer que se Camilo se suicidara com um tiro, Eça, em igualdade de circunstâncias, se envenenaria. Eça de Queiroz leu o meu artigo e, achando graça, pediu a um amigo para lhe indicar quem eu era, quando passassem por mim. Efectivamente, uma tarde, embora eu simulasse não dar por isso, senti o olhar de Eça seguir-me com curiosidade e interesse.

O Mestre trabalhou nos jornais durante algum tempo, não é verdade?
Sim, durante muitos anos. Foi na República Portuguesa, de João Chagas, que eu iniciei a minha vida jornalística. Vencido o movimento revolucionário de 31 de Janeiro, João Chagas foi deportado e o jornal terminou. Depois, em Lisboa, antes de me aceitarem num jornal foi uma tragédia. Imagina lá... Não acreditavam que eu servisse para jornalista. De tal modo que a princípio tive de trabalhar de graça: mas, por fim, já era solicitado e me pagavam bem.

Em que jornais trabalhou o senhor Raul Brandão?
Aqui, em Lisboa, estive no Correio da Manhã, de Manuel Pinheiro Chagas, e no Dia. Mais tarde, fui dono do Imparcial, que António José de Almeida me comprou para fazer A República, onde também colaborei. E agora, ainda, às vezes, escrevo na Seara Nova, que já dirigi.

Que escritores impressionaram mais profundamente o seu espírito?
Dos portugueses, Camilo.

Fale duma maneira geral...
Os russos interessaram-me muito, destacando entre estes Dostoiewsky. Mas os que sempre mais atraíram o meu interesse e a minha curiosidade foram os escritores de memórias. Principalmente Saint Simon, Casanova, Benevenuto Cellini, e, acima de todos, o Cardeal de Metz. Mas quem deixou um traço mais profundo na minha existência e na minha alma, não foram os escritores: tem sido minha mulher, e foi minha mãe e uma velha criada, a Maria Emília... No prefácio do 2.° volume das Memórias já eu disse o grande lugar que minha mulher ocupa na minha vida. De minha mãe...

e, Raul Brandão, acedendo a um pedido nosso, ditou-nos esta linda página de ternura, do seu volume inédito de Memórias:

Uma evocação

Algumas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui, a meu lado. Minha mãe, só nervos e paixão, viu cair por terra todos os seus sonhos e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo. A realidade afastou-a sempre de si. Venceu-a. Alimentou-se do mesmo sonho que a devorou até final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Dela herdei a sensibilidade e também o sonho. Bastava que a bica do quintal deitasse menos para minha mãe adoecer. Ficava horas a olhar extasiada o pouco de musgo humedecido, donde escorria, vindo da escuridão, o fio azul infatigável que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas líquidas, que logo subiam a superfície reluzindo iluminadas.

Às vezes íamos vê-la brotar no fundo da mina e assistíamos, ansiosos, ao nascer da água borbulhando na madre e escorrendo pela caleira de pedra. Quando, mais tarde, minei o monte fi-lo com a mesma ansiedade. De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo desde o jorro de Inverno que transborda, ao fio de Setembro, deitado com aflição.

– Se secasse!...

De noite punha o ouvido à escuta, como acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz extraordinária de pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira, nem a das folhas, nem a do vento – nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tom, às vezes, e, por momentos, emudece.

– Secou! – E lá torna a correr.

Plantou árvores até aos últimos dias como eu as planto. E já prostrada, mantinha de pé a ilusão e teimava em sonhar, como eu sonho, até final.

Às vezes, tendo corrido o quintal numa exaltação, corria para ela e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Minha mãe não me dizia palavra, nem sequer me estranhava porque via em mim reproduzida a sua sensibilidade exagerada – só me pousava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho. A lua aparecia atrás dos montes sobre a mais bela paisagem do mundo, porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.

O meu sonho está preso por um fio ténue indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Talvez porque o amor nunca mais se apaga, talvez porque a luz seja a única realidade do mundo, o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade. Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, lá está todas as noites, ao pé da bica. Não a separo daquele fio que a lua toca por momentos com o dedo molhado em branco, e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto àqueles que a sabem amar."

Depois, enternecidamente, ergueu diante de nós a figura da velha criada. São ainda para o mesmo livro os seguintes períodos, que nos ditou:

A Maria Emília foi até morrer nossa criada. Estou a vê-la, de bigode branco e olhos espertos, dum azul já desbotado pela velhice, mas teimando em exprimirem ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada, a sorrir, e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar, atravessando a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é a expressão mais íntima e mais bela da sua alma – a alegria na desgraça.

Os sessenta anos para o talento para a alma de Raul Brandão são a plena mocidade. Perguntamos-lhe: Além do 3.º volume das Memórias, que outras obras prepara ainda o Mestre?
Tenho no prelo um livro para crianças, feito de colaboração com minha mulher – Portugal Pequenino, de Raul Brandão e Maria Angelina… E na próxima Primavera conto publicar uma novela – Pobre de Pedir.

Alegremo-nos. A nossa literatura, actualmente tão dessorada e anémica, vai enriquecer-se com um livro de valor. E quantas obras belas e audazes não podemos ainda esperar dos seus cabelos brancos e da sua mocidade.

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