tag:blogger.com,1999:blog-79448972164156747842024-03-19T04:56:09.145-07:00Raul Brandãohelenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.comBlogger30125tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-32542950902013613592011-10-19T11:29:00.000-07:002011-10-19T11:55:39.381-07:00Um sentido para a vida<div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: black;">Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia - mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer - e eles vão morrer. </span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: black;"><br />
A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei - o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros. Não é o gozo que eu invejo (não dou um passo para o gozo) - é o pedreiro que passa por aqui logo de manhã com o pico às costas, assobiando baixinho, e já absorto no trabalho da pedra. <br />
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</span><span style="color: black;">Se vale a pena viver a vida esplêndida - esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? ... Só a luz! só a luz vale a vida! A luz interior ou a luz exterior. Doente ou com saúde, triste ou alegre, procuro a luz com avidez. A luz é para mim a felicidade. Vivo de luz. Impregno-me, olho-a com êxtase. Valho o que ela vale. Sinto-me caído quando o dia amanhece baço e turvo. Sonho com ela e de manhã é a luz o meu primeiro pensamento. Qualquer fio me prende, qualquer reflexo me encanta. E agora mais doente, mais perto do túmulo, busco-a com ânsia. <br />
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<strong>Raul Brandão, <em>in</em> Se Tivesse de Recomeçar a Vida </strong></span></span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-49142229027880174222011-10-18T11:30:00.000-07:002011-10-19T11:33:49.524-07:00O assombro da incoerência do nosso ser<div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: black;">Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer - desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas. </span></span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="color: black;">O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo... Também entendo que é tão difícil asseverar a exactidão dum facto como julgar um homem com justiça. </span></div><span style="color: black;"><div style="text-align: justify;"><br />
Todos os dias mudamos de opinião. Todos os dias somos empurrados para léguas de distância por uma coisa frenética, que nos leva não sei para onde. Sucede sempre que, passados meses sobre o que escrevo - eu próprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço... </div><div style="text-align: justify;"><br />
É por isso que não condeno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim próprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo - para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é fácil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erróneas. <br />
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<strong>Raul Brandão <em>in</em> Se Tivesse de Recomeçar a Vida</strong></div></span>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-30051850425044705292011-10-17T11:35:00.000-07:002011-10-19T11:36:42.609-07:00A alma é exterior<div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: #464545;"><span style="color: black;">A alma, ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia tomar cor. Há seres cuja alma é uma contínua exalação: arrastam-na como um cometa ao oiro esparralhado da cauda - imensa, dorida, frenética. Há-os cuja alma é de uma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes da matéria comunicar. O amor não é senão a impregnação desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível. Assim é que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus. <br />
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<strong>Raul Brandão, in "Húmus" </strong></span></span></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-86403075913715670442011-10-16T07:23:00.000-07:002011-10-16T07:24:35.473-07:00Memórias, volume I<div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: center;">Janeiro de 1915</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: center;"><i>AOS MORTOS</i></div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: center;"><b>PREFÁCIO</b></div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: center;"><b><br />
</b></div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;">Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existência foram outros: foram, por exemplo, D. João da Câmara, poeta e santo, Corrêa de Oliveira, um chapéu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornais?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;">A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses, sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões ião nítidas como na primeira hora ouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul-ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que faça, cada vez se afastam mais de mim... Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo de oiro, a outra-banda verde... Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração a morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no Inverno em que secou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.Lá está a velha casa abandonada, e as árvores que minha mãe, por sua mão, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobe o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar.</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><br />
</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;">Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu av6, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azuis, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do <i>Judeu </i>que elas liam, com o <i>Feliz Independente do Mundo e da Fortuna </i>e a <i>Recreação Filosófica </i>do padre Teodoro de Almeida. Ouço, desde que me conheço, sair do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da campanha: – Ó sê Manuel, cá pra baixo prò mar! – Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arrais, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Há que tempos! – e foi ontem... A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha à proa; do mar profundo – chape que chape – só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do ar. Nasce da água, mistura-se na água, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita no ar vivo que respiro, no oceano imenso que me envolve. Iça! iça! – e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, à vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, além no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diáfana, emerge enfim, como aparição, do fundo do mar.</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><br />
</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;">A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem à praia para lavar as redes, e o velho piloto-mor, de barba branca, sentado à porta da Pensão, fuma inalterável o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céu derrete. Mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o <i>Vai com Deus</i>, a <i>Senhora da Ajuda</i>, o <i>Deus te guarde</i>, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o <i>bendito</i>, tanta foi a pesca. – Quantas dúzias? – Um cento! dois centos! – Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no Inverno, a sardinha que os batéis carreiam do mar inesgotável, estivando de prata todo o cais. Às vezes o peixe miúdo e vivo é tanto que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna à mostra, para o levarem, apregoando- o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em Setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o Sul uma parede compacta que tem léguas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, à primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fora, anunciando o Inverno que vem próximo. O quadro muda, e os homens morrem à boca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da ressaca, o velho arrais de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injúrias, para lhes dar ânimo, e todo o mulherio da Póvoa, de Matosinhos, da Afurada – vento sul, camaroeiro içado –, com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lágrimas: – Ai o meu rico homem! o meu filho, que não o torno a ver! – E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, Inverno a Inverno, lhos leva todos para o fundo.</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><br />
</div><div style="font: normal normal normal 12px/normal 'Times New Roman'; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;">O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor o do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equívocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais... Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça às feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a água empapada, e, entre as ervas gordas como bichos, pegadas de bois cheias de tinta azul; reflectindo o céu implacável de Agosto. Os pássaros com as asas abertas desconfiam e hesitam: a sede aperta-os o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha, agarramo-los com ferocidade. Chiu!... Uma andorinha descreve lá no alto um círculo perfeito, e vem, no voo desferido, arrepiar com o bico a água estagnada. Toca numa palheira de visco – é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É penas e vida frenética. E essa vida pertence-te!... Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rãs e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura torva, nem o Anticristo, me comunicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba, que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando saía à estrada... Sou capaz de te dizer qual o tom róseo de certos dias. quando o pessegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmúrio da minha bica não me sai dos ouvidos até à hora da morte. Quase todos os meus amigos – o Nel, que não tornei a ver... – são dessa época. Doutras impressões mais tardias não restarão vestígios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos – que já não existem – acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longínquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim... Olha, olha ainda e extasia: e o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Bóia espuma na água viva que a maré traz da barra... E não há cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.</div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-85968866982961390172011-10-15T11:37:00.000-07:002011-10-19T11:38:52.626-07:00Ninguém pode encarar-se a si próprio até ao fundo<div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: #464545;"><span style="color: black;">Ninguém pode com isto, ninguém pode encarar-se a si próprio e ver-se até ao fundo. A tua meticulosidade é de ferro, a tua meticulosidade está de tal maneira entranhada no teu ser que sem ela não existes. Pois até a tua meticulosidade se há-de dissolver! E tu sem o hábito não existes, nem tu sem o dever, nem tu sem a consciência. Sem estas palavras a vida não existe para ti, e sem escrúpulos que te resta? O que aí está é temeroso, seres estranhos, seres que, se dão mais um passo, nem eu nem tu podemos encarar com eles. Andam aqui interesses - e outra coisa. Com mil palavras diversas e ignóbeis, mil bocas que te empurram para a infâmia - outra coisa. Tens de confessá-lo. Não é a consciência - não é o remorso - não é o medo. É uma coisa inexplicável e imensa, profunda e imensa, que assiste a este espectáculo sem dizer palavra - e espera... És imundo, és a vida. <br />
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<strong>Raul Brandão, <em>in</em> 'Húmus' </strong></span></span></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-27929139171601581692011-10-14T11:39:00.000-07:002011-10-19T11:40:34.221-07:00A primitiva infâmia<div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: #464545;"><span style="color: black;">Desde que se cumpram certas cerimónias ou se respeitem certas fórmulas, consegue-se ser ladrão e escrupulosamente honesto - tudo ao mesmo tempo. A honradez deste homem assenta sobre uma primitiva infâmia. O interesse e a religião, a ganância e o escrúpulo, a honra e o interesse, podem viver na mesma casa, separados por tabiques. Agora é a vez da honra - agora é a vez do dinheiro - agora é a vez da religião. Tudo se acomoda, outras coisas heterogéneas se acomodam ainda. Com um bocado de jeito arranja-se-lhes sempre lugar nas almas bem formadas. <br />
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<strong>Raul Brandão, <em>in </em>"Húmus" </strong></span></span></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-6222592152713104452011-10-13T11:42:00.000-07:002011-10-19T11:56:25.821-07:00Medo da própria alma<div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: #464545;"><span style="color: black;">Se Deus não existe... O pior de tudo é que eu digo e afirmo - Deus não existe! - mas na realidade não sei se Deus existe ou não. Não há nada que o prove - ou que prove o contrário. O pior de tudo é que eu sinto uma sombra por trás de mim e não sei por que nome lhe hei-de chamar. O pior que podia acontecer no mundo foi alguém pôr esta ideia a caminho. </span></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: #464545;"><span style="color: black;"><br />
Mas mesmo que Deus não exista, tenho medo de mim mesmo, tenho medo da minha alma, tenho medo de me encontrar sós a sós com a minha alma, que é nada, o fim e o princípio da vida e a razão do meu ser. Mesmo que Deus não exista e a consciência seja uma palavra, há ainda outra coisa indefinida e imensa diante de mim, ao pé de mim, perto de mim. <br />
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<strong>Raul Brandão <em>in</em> "Húmus" </strong></span></span></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-66002770273683448032011-10-12T11:43:00.000-07:002011-10-19T11:44:03.219-07:00Vivemos de palavras<div style="text-align: justify;"><span class="conteudo"><span style="color: #464545;"><span style="color: black;">Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe. Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. Mas há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há momentos em que cada um grita: - Eu não vivi! eu não vivi! eu não vivi! - Há momentos em que deparamos com outra figura maior, que nos mete medo. A vida é só isto? <br />
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<strong>Raul Brandão <em>in</em> Húmus </strong></span></span></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-4647848269347569452011-10-11T11:50:00.000-07:002011-10-19T11:51:05.369-07:00O hábito<div style="text-align: justify;"><span class="titulo">"O hábito é que me faz suportar a vida. Às vezes acordo com este grito: - A morte! A morte! - e debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh! Como a vida pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas."</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span class="titulo"><strong>Raúl Brandão in Húmus</strong></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-43136781186008118972011-10-10T01:52:00.000-07:002011-10-19T11:54:32.546-07:00O tempo<div style="text-align: justify;"><span class="titulo">"Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos."</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span class="titulo"><strong>Raúl Brandão <em>in </em>Húmus</strong></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-5447816908371076252011-10-09T00:56:00.000-07:002011-10-19T11:58:36.039-07:00Convenções<div style="text-align: justify;"><span class="titulo">"Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê-la vir à supuração."</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span class="titulo"><strong>Raúl Brandão <em>in</em> Húmus</strong></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-25515933208604606802011-10-08T11:00:00.000-07:002011-10-19T12:00:03.298-07:00Vida fictícia<span class="titulo">A vida é fictícia, as palavras perdem a realidade. E no entanto esta vida fictícia é a única que podemos suportar. Estamos aqui como peixes num aquário. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até à cova sem dar por ela. Estamos aqui a matar o tempo.</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;"><span class="titulo"><span class="titulo">Reduzimos a vida a esta insignificância... Construímos ao lado outra vida falsa, que acabou por nos dominar. Toda a gente fala do céu, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com ele.</span></span></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-48124038391090252352010-10-06T20:36:00.000-07:002010-12-04T19:41:22.453-08:00Filipe Abranches: O Diário de K.<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwbxjo10SZRLroBMnjUya6OVHLAPgSgiBimFE0Pz2yCAhxl-Ltf2z1TWVFytjd7VcNtJ5K5W5qOGGA0qHctsB8n4MDHnfgp86zpQoGWjPFv4Dwyo4BbCDtPgtO_DVwE0a5NJ2Svkw9I1o/s1600/Imagem1242.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwbxjo10SZRLroBMnjUya6OVHLAPgSgiBimFE0Pz2yCAhxl-Ltf2z1TWVFytjd7VcNtJ5K5W5qOGGA0qHctsB8n4MDHnfgp86zpQoGWjPFv4Dwyo4BbCDtPgtO_DVwE0a5NJ2Svkw9I1o/s320/Imagem1242.jpg" width="240" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">["- Amar ou morrer? Amar ou morrer?</span></strong></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">- Amar! Amar!"]</span></strong></div><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhY_SIyqH9yyBA0dQK4JHMOYSHEyOB1iFLKlU0N91lZ9sV9iV7IqGsT8Q6d9aTny_pXGnsAUct6BPsardAeSNwUsfSoFY6ZSt45ZDRcb1iKXBg9TQhNc4LnSyHVRhkbg8Iszb8byBG8sjI/s1600/Imagem1241.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhY_SIyqH9yyBA0dQK4JHMOYSHEyOB1iFLKlU0N91lZ9sV9iV7IqGsT8Q6d9aTny_pXGnsAUct6BPsardAeSNwUsfSoFY6ZSt45ZDRcb1iKXBg9TQhNc4LnSyHVRhkbg8Iszb8byBG8sjI/s320/Imagem1241.jpg" width="240" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">[Sonhar... é tudo o que resta!]</span></strong></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Em 2001, Filipe Abranches, autor de banda desenhada, publicou um livro lindíssimo [edições Polvo], baseado na história de amor de K. Maurício, de <strong>A Morte do Palhaço, de Raul Brandão</strong>. Citação que escolhe para abrir: <em>"Nada se perde, cada um traz consigo, cometa que arrasta a cauda de lama ou de ouro, o seu passado, vestígios de ideias, crimes, horas de amargura e horas em que se beijaram lábios de mulher por quem a gente se perde... Creia na minha experiência de vida..."</em></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-54844079838682183352010-10-05T09:15:00.000-07:002010-12-04T19:18:52.011-08:00Raul Brandão: sobre a mãe<div style="text-align: justify;">"Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão: viu cair por terra todos os seus sonhos - e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo! A realidade temerosa afastou-a sempre de si. Venceu-a. Deu-nos vida a todos. Alimentou-nos do mesmo sonho que a devorou até ao final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Foi dela que herdei a sensibilidade e o amor pelas árvores, pela água, e dela herdei também o sonho...</div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-78687537986099113092010-10-03T19:10:00.000-07:002010-12-04T19:15:08.797-08:00Raul Brandão: sobre o pai<div style="text-align: justify;">"Aos 23 do mês passado (Julho de 1910) morreu meu pai amachucado, exausto e pobre. Encntrão de um, repelão de outro, assim foi até à cova. Tinha 67 anos incompletos. Não podia mais. Encontraram-se-lhe alguns cobres no bolso. Há muitos anos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: aos domingos. Aos domingos, metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lágrimas sem fim sobre um velho romance de Camilo."</div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-12974223679124182742010-10-02T13:16:00.000-07:002010-12-04T19:09:38.399-08:00Foz do Douro, Porto<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZJfTha5eWmwMb3Vlgp9XuOjcdWgXOTolJOIWFr79t95O0ibFK7caqt85M0lzDPt2b_laWVBJRHj5RIWUH2ZCaYOsqi4gOnPDod8rn6zz62KAGg_X_PBw8afjf8W7sZO-9ncn3vUB1AW0/s1600/10042376.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="240" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZJfTha5eWmwMb3Vlgp9XuOjcdWgXOTolJOIWFr79t95O0ibFK7caqt85M0lzDPt2b_laWVBJRHj5RIWUH2ZCaYOsqi4gOnPDod8rn6zz62KAGg_X_PBw8afjf8W7sZO-9ncn3vUB1AW0/s320/10042376.jpg" width="320" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">Monumento de pedra e bronze dedicado a Raul Brandão.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">Concebida por Henrique Moreira em 1967.</div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-21810463771027420832010-10-01T07:34:00.000-07:002010-12-04T19:06:20.179-08:00O pobre de pedir<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhS66LjiaB9qov94VJciXFKi6y44vPOQGLSYNPrvCuyse_1xmyJ0Qc04M4Hx1gt0G_tuIg9h8IzWXZAEyBBM51Su94C2hk9UVGygnn5mdGDyMxorZ9F1ufqXy8kwtCkRsVDUpp4uw1Dz8c/s1600/419luDQwnuL__SL160_AA115_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhS66LjiaB9qov94VJciXFKi6y44vPOQGLSYNPrvCuyse_1xmyJ0Qc04M4Hx1gt0G_tuIg9h8IzWXZAEyBBM51Su94C2hk9UVGygnn5mdGDyMxorZ9F1ufqXy8kwtCkRsVDUpp4uw1Dz8c/s200/419luDQwnuL__SL160_AA115_.jpg" width="200" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">[Editado postumamente em 1931]</span></strong></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;"><br></span></strong></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Há um momento atroz entre nós os dois em que ambos rangemos de dor: é quando eu suspeito e ela suspeita que o nosso casamento foi uma mentira. É quando no silêncio que me impus, de propósito para a fazer sofrer, ela desconfia que nunca a amei - e esse pensamento dói-lhe a ponto de gritar de dor - é quando eu desconfio que tudo em mim foi cenário e que até o amor está fora do meu alcance. E ambos, em lugar de nos recriminarmos, remoemos em silêncio, eu e os meus pensamentos hostis, ela e os seus pensamentos dolorosos. Tenho a impressão que chega a ser cruel. Porque eu despedaço-me e grito. Chego a gritar de dor - e ela cala-se. </div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-41284616580878151462010-09-30T17:10:00.000-07:002010-12-01T17:33:27.277-08:00Os Pescadores<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZJLbhNzYr8ryIURa3NatTedb4XoJli1e5qjA82KprWbdHP2C-jBIZzPOfw17ZGZGw7KrprqX9CbpJrsm9J12H-3YSEMGEGyrDjR42QWc-HeMxCzyPccaBQpR_SVYYjxUV2DKcG2iVaps/s1600/pes.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZJLbhNzYr8ryIURa3NatTedb4XoJli1e5qjA82KprWbdHP2C-jBIZzPOfw17ZGZGw7KrprqX9CbpJrsm9J12H-3YSEMGEGyrDjR42QWc-HeMxCzyPccaBQpR_SVYYjxUV2DKcG2iVaps/s1600/pes.jpg" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">[À memória do avô, morto no mar]</span></strong></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Tudo aqui é pobre e humilde, mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham, os pescadores não fazem mais nada - deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha. A sorte destas mulheres numerosas melhorou muito desde que a Câmara lhes aforou terrenos no areal para cultivo. São as mulheres também que, depois da sardinha disputada a lanço, a levam à cabeça para a casa da salga, grandes barracões de madeira com manjedouras encostadas às paredes para as bestas e um depósito de sal branco de Aveiro. É ali que o almocreve a salpica de fresco antes de se meter a caminho, ou as mulheres a lavam em água ensossa. Só em Mira há vinte desses barracões, onde, quando é muita, ou não tem comprador, a metem em lagares de madeira e em dornas, ficando de salmoura até chegar o Inverno - quando o homem esfaimado a estende num pedaço de pão sabendo-lhe a mais...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filósofo como eu. </div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-7263297086834430412010-09-29T00:45:00.000-07:002010-12-01T17:09:21.897-08:00A farsa<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjA7rkqgYIUYBpfI75gI_aunoqBZ6vJ2PhcPcmaPy7IqsQwsenP1CjSerdZAzYwGwohyphenhyphenclirSH_xCO8orsnBX5RWuGH8e2o0My7IFelAHkOKIIFpp4XnJsDj_WHiIT4YZCNt55Lq1dELqw/s1600/Imagem1238.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjA7rkqgYIUYBpfI75gI_aunoqBZ6vJ2PhcPcmaPy7IqsQwsenP1CjSerdZAzYwGwohyphenhyphenclirSH_xCO8orsnBX5RWuGH8e2o0My7IFelAHkOKIIFpp4XnJsDj_WHiIT4YZCNt55Lq1dELqw/s320/Imagem1238.jpg" width="240" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">[Capa de Julião Machado para a 1ª edição, em 1903]</span></strong></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Desde pequena que sinto isto aqui a remorder-me, sem descanso, dia e noite, sempre. A inveja é um veneno que me tem azedado toda a existência: é um veneno amargo e sem o qual eu não posso passar. A inveja derranca-me e excita-me, revolver todo o meu ser e faz subir à tona de alma a lama esquecida: exaspera-me todas as feridas: põe-mas em carne viva. Faz-me bem. Desde pequena que toda a gente tem pena de mim e me despreza. Sou assim velha desde pequena: aos onze anos já era reflectida e má como as cobras. - É tão feia, coitadinha! - E esta estúpida piedade acompanhou-me - cresceu comigo, pegou-se-me e queima-me com um vestido de fogo.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">- Toda a gente tem tido pena da Candidinha!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Já em pequena trazia este mesmo xaile, este mesmo trapo, que foi crescendo comigo. E não creio - nunca cri em Deus, no Deus dos pobres, no Deus que recomenda a desgraça, a humilhação, a esmola, no Deus que aconselha a resignação e a fome. No Deus a quem as velhas ricas fazem lausperenes e rezam ladainhas; no Deus que as protege - e que elas têm em casa em ricos oratórios, entre lamparinas e velas de cera, pregado na cruz, com resplendores de brilhantes.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Elas mandam nos padres, confessam-se, vão às missas com vestidos de seda a rugir, dispõem do crucificado, ao qual desde pequena me obrigam a rezar, com os joelhos de rastos nas lajes, doridos e inchados de frio... É desse tempo que data o frio que se me coou até aos ossos e nunca mais me deixou.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">O meu filho?... O meu filho alimentei-o com ódio - criei-o à custa da desgraça. Preguei-lhe todos os rancores, todos os exasperos, tudo quanto sofri. Mostrei-lhe a minha alma e a alma dos outros. Fartei-o de Verdade. Disse-lhe, é certo, que neste mundo só o dinheiro vale, e que os pobres são sempre desprezados e calcados. Os pobres nunca têm razão: quebra-se sempre pelo mais fraco. O meu filho qui-lo à minha imagem e semelhança; desejei insuflar-lhe isto que sinto; livrá-lo de ser escarnecido e pobre; de viver de esmolas. Quis que o meu filho fosse eu. </div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-41344060061987527082010-09-28T00:14:00.000-07:002010-12-01T16:45:24.025-08:00Impressões e Paisagens<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiken7e3FMfrnT7fjBA6DAGukkSPos5buBk6FvJ_XclSvs0JGGEaZjxU1oLr62lhVnYRqn84ZaTRb8xhjSm2QKNAuEFSchIgEeAstvtOiO4_k9M9VTiivEKdu901YjknaB_BWvnOOmYlG4/s1600/Imagem1235.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiken7e3FMfrnT7fjBA6DAGukkSPos5buBk6FvJ_XclSvs0JGGEaZjxU1oLr62lhVnYRqn84ZaTRb8xhjSm2QKNAuEFSchIgEeAstvtOiO4_k9M9VTiivEKdu901YjknaB_BWvnOOmYlG4/s200/Imagem1235.jpg" width="150" /></a></div><div style="text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">[Primeiro livro, de contos, publicado aos 23 anos]</span></strong></div><br />
<div style="text-align: justify;">Honesto e leal. Rude, cheio de rugas, bem velho já. Com saúde ainda, os dentes brancos, a barba grisalha, o olhar vivo e moço. Cheia de dedicações a sua vida inteira. Criança ainda embarcara, crestara-se-lhe a pele, fizera-se valente no mar. Sustentava a mãe. Tinha asperezas na voz; âncoras e datas a tinta azul nos braços possantes... Envelhecera, morrera-lhe a mulher, e ele ficara em terra por fim, com o filho e os netos. A neta casara um dia com o Nel, um rapagão que, como ele, partira em seguida na sua primeira viagem de marinheiro para o Brasil. Mas quando a barca voltou, ele não vinha. Lá tinha ficado, uma noite de tempestade, no mar... Envelhecera, não podia trabalhar. O filho, os netos, pescavam, e ele ajudava-os a consertar as redes. Mas o peixe escasseava... E o que ele sofria ao ver os outros trabalhar no batel enquanto ele ficava em casa a remendar as velas. O que ele sofria, bom Deus!...</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><strong><span style="font-size: x-small;">[Do conto "O Marinheiro"]</span></strong></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-68079991607055384442010-09-27T00:48:00.000-07:002010-12-01T16:10:29.000-08:00Os Pobres<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDC2SiKGHT9fcvUBUg0xTzWg5grtJMnsEsusQWLpJg6B3_8lanYpHFkJs0gDJxyEf30QiELMl8bmPvJ7jzuPphvfPTOvtGR4UOTmXmWfjUVRDHB48NRCB2VqVSifxaq2T3xkHZCJlRbIc/s1600/296_265.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDC2SiKGHT9fcvUBUg0xTzWg5grtJMnsEsusQWLpJg6B3_8lanYpHFkJs0gDJxyEf30QiELMl8bmPvJ7jzuPphvfPTOvtGR4UOTmXmWfjUVRDHB48NRCB2VqVSifxaq2T3xkHZCJlRbIc/s1600/296_265.jpg" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Triste existência sem ódio e sem gritos. A vida não na entende e recebe cada empurrão com o ar espantado e aflito de quem não compreende. Que mal fizera? Que mal fizera? Pois a desgraça faz rir? O sofrimento faz rir?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">E em torno as bocas escancararam-se, ao verem-no gordo, pedinchão e grotesco. Há seres que nascem com esta sina - amargar a vida. Tudo lhe corre torto, até as coisas mais simples, as coisas que para os outros nem sequer existem. Em que hora aziaga encontrou a má sorte que nunca mais o deixou? A desgraça escarrancha-se no pescoço de certos homens. E é para sempre, para toda a vida! Nunca mais os larga. Viera a quebra, aflições ainda mais negras que o coração dos outros. Enganavam-no com a alegria de o verem rebaixado e perdido, empurrão daqui, empurrão dali, aos tombos por esse mundo. E ele punha-se a olhar para a desgraça, atarantado e estúpido. Que mal fizera para sofrer? E mesmo a chorar, a sua máscara, de cabelos brancos estacados, fazia rir.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Era dessas criaturas a quem um montão de desgraças torna ainda mais ridículas: a ruína, a miséria e a fome. Enlameado pela vida fora, resignado e chorão, ele aí vai...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><strong><span style="font-size: x-small;">[Sobre Gebo, um dos personagens mais comoventes criados por Raul Brandão]</span></strong></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-27199869539806745062010-09-26T15:18:00.000-07:002010-12-01T16:12:19.388-08:00Húmus<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1eJQlmrx-BX8k9rI9cc13OQTxvweW1LR2_c1j5bUYWtwl-75a5_3WjHd0DPXsq6E3HBfu6bcUkRmMA_8Eu-nUQc5HenDWOfkAs23Ai9PJTygkuNH4PZD788X_KA37fC5nik6pE5qyHFI/s1600/oioioi.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1eJQlmrx-BX8k9rI9cc13OQTxvweW1LR2_c1j5bUYWtwl-75a5_3WjHd0DPXsq6E3HBfu6bcUkRmMA_8Eu-nUQc5HenDWOfkAs23Ai9PJTygkuNH4PZD788X_KA37fC5nik6pE5qyHFI/s1600/oioioi.jpg" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><strong><span style="font-size: x-small;">[Edição de 2010]</span></strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
Qual é a minha experiência da vida? Nenhuma. Qual é a lei que extrais da vida? Nenhuma. Só o espanto. Só uma coisa cada vez maior, sempre assumindo maiores proporções, que sinto desabar no silêncio, mais dourada e frenética que o sonho. Tudo se reduz a coisas a que damos valor, e a coisas a que não damos valor. E entretanto ao nosso lado passa o tropel mágico, desesperado e caótico. Ali fora desabam os séculos e a torrente misteriosa que leva consigo estrelas em vez de calhaus. O jacto de portento vem do infinito e caminha para o infinito, levando consigo a alma, o universo, o lógico e o ilógico, o absurdo e Deus. </div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;">Uma vida resume-se em duas linhas, sintetiza-se em dois ou três factos. Se a vida fosse só isso não valia a pena vivê-la. A vida é muito maior pelo sonho do que pela realidade. Pelo que suspeitamos do que pelo que conhecemos. Se nos contentamos com a superfície, não há nada mais estúpido - se nos quedamos a contemplá-la faz tonturas. É por isso que eu teimo que a Morte não tem só cinco letras, mas o mais belo, o mais tremendo, o mais profundo dos mistérios.</div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-19323437079344141412010-09-25T08:28:00.000-07:002010-12-01T16:13:07.800-08:00A morte do palhaço<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMPOMdJ6ECNispSSKSHOMyDr2tuiNkZx5Ea1H79yGxlwARsKXJaI5OCpiRcxXoh4zMgnCKRu8zDFm7yiTaoilq1NhZ6P6s2YOazbOddih_6TyKi4_jFZfD5u3ptG3vSVdXvHkLA9J1jOY/s1600/bu01176.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMPOMdJ6ECNispSSKSHOMyDr2tuiNkZx5Ea1H79yGxlwARsKXJaI5OCpiRcxXoh4zMgnCKRu8zDFm7yiTaoilq1NhZ6P6s2YOazbOddih_6TyKi4_jFZfD5u3ptG3vSVdXvHkLA9J1jOY/s1600/bu01176.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;">É sempre a mesma coisa há meses, a mesma ansiedade sem causa, que não sei de onde provém. Parece que espero uma desgraça desconhecida, uma catástrofe que ignoro - e que nunca chegará. Que nunca chegará, ouves bem? ... Vivo alheado, o cérebro espalhado por todas as coisas: apenas esta inquietação me domina e me enche. Se saio do sonho, não sei viver. Sobressalto-me com o menor ruído imprevisto: a porta que se fecha é para mim uma angústia. Compreendes isto? Antes a catástrofe que espero caísse sobre mim e me estatelasse no solo, do que este terror contínuo, a inquietação do que é vago, o aflitivo do nada... </div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-45029184701384400682010-09-24T13:05:00.000-07:002010-11-25T13:15:14.664-08:00Entrevista a Raul Brandão<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiI4lKbKQ9uTz7L4tc2fIqStYkB9h_2UXeTDHClf3vCkYJ2NhhOHrtvfGTH9eX5KkJGy0iQn5gdilDjgCdKozXqHpc8bUUfRhyphenhyphenm4-b_2DseixylpihEkrgNRegK_WqcDoA_ancnMGUtNQg/s1600/VG_19301207-1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiI4lKbKQ9uTz7L4tc2fIqStYkB9h_2UXeTDHClf3vCkYJ2NhhOHrtvfGTH9eX5KkJGy0iQn5gdilDjgCdKozXqHpc8bUUfRhyphenhyphenm4-b_2DseixylpihEkrgNRegK_WqcDoA_ancnMGUtNQg/s320/VG_19301207-1.jpg" width="211" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br />
</div>[Na sua edição de 7 de Dezembro de 1930, o jornal republicano vimaranense <strong>A Velha Guarda,</strong> noticiava a morte Raul Brandão, desaparecido dois dias antes, e publicava uma entrevista do poeta <strong>Américo Durão</strong> ao escritor, que fala, entre outros assuntos, do seu processo de trabalho.]<br />
<br />
<div style="text-align: justify;"><strong>Raul Brandão, o novelista, Eugénio de Castro, o poeta, tão diferentes e tão distantes, ocupam hoje os dois lugares mais eminentes da literatura portuguesa. A obra de Eugénio de Castro é serena e bela como os mármores de Atenas. A de Raul Brandão mais convulsa e abstracta. As figuras dos romances deste grande escritor são irreais, simbólicas. Ao abrirmos um dos seus livros, dir-se-ia mergulharmos num mundo de fantasmas. Das suas páginas desprende-se uma vida espectral, de sonho. E, no entanto, algumas as suas personagens palpitam de vida interior, todos nós as conhecemos. Acotovelamo-las na rua. Qual de nós não encontrou ainda no seu caminho a Candidinha, de falas mansas e coração cheio do ódio que as humilhações e desprezos, gota a gota lá verteram? E o pobre K. Maurício? E o Gabiru? E o coveiro, cuja crosta de inveterado cinismo se rompe, deixando escapar em cataratas a dor e a revolta, quando a morte na sua ronda cega, insensível, vem bater à sua porta para levar-lhe a filha? E a mulher a dias, mísero farrapo de humildade e sacrifício, que passa na vida sem a noção de que a vida lhe pertence a ela também? E os seus ladrões e prostitutas, que são apenas alma?</strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Dir-se-ia que Raul Brandão, como Prometeu, roubou aos Deuses o fogo com que havia de acender em estrelas a miséria daquele humano barro envilecido. Devia ser interessante descobrir o processo usado pelo escritor para dar às suas criações aquela forma assim impalpável e viva: ouvi-lo sobre os homens, literatos e artistas do seu tempo. O que pensaria dos novos o Mestre genial do Húmus e dos Pescadores? Que prosadores e poetas mereceriam a honra da sua preferência? E recordamo-nos da admiração reverente com que Aquilino Ribeiro lhe fala. Mestre -diz Aquilino ao dirigir-se ao grande novelista da História de um Palhaço. Assim dita a palavra Mestre enobrece Raul Brandão e o magnífico prosador da Via Sinuosa.</strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
<br />
<strong><u>Como trabalha o escritor</u></strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Pedimos-lhe uma entrevista nesse sentido: mas Raul Brandão interrompe-nos surpreendido e rápido:</strong></div><div style="text-align: justify;">Eu falar-lhe dos novos, de prosadores, de artistas... Você está doido! Sei lá alguma coisa disso…</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Aguardámos, sorrindo, que a maré passasse e foi o próprio Raul Brandão que, amavelmente, se nos dirigiu:</strong></div><div style="text-align: justify;">Porque não vem você passar oito dias comigo e minha mulher à nossa casa do Norte? Ali ver-me-á trabalhar e poderá escrever alguma coisa interessante. Não quer vir? Porquê?</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><strong>Não... Não posso agora sair de Lisboa.</strong></div><div style="text-align: justify;">Pois é, pena. Olhe, então, se quiser, apareça numa destas tardes lá por casa. Sabe onde moro? Ali, a S. Domingos, à Lapa…</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Ficou combinado, iríamos a sua casa.</strong></div><div style="text-align: justify;"><strong>E no último domingo, às onze e meia batíamos-lhe à porta. Foi o próprio escritor quem veio abrir, sorridente:</strong></div><div style="text-align: justify;">Você é implacável, ó Américo Durão. Antão o que quer? Diga lá o quer você de mim?</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><strong>Já que não deseja referir-se aos outros, fale-nos de si, explique-nos a sua maneira de trabalhar.</strong></div><div style="text-align: justify;">Mas eu tenho lá maneira de trabalhar! Você tem cada pergunta...</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Exalta-se novamente, o seu olhar de um azul nevoento acende-se, purifica-se, torna-se límpido e luminoso. Dá duas voltas rápidas na casa, ri como uma criança. Mas é evidente que tem um grande desejo de atender o nosso pedido. Depressa se acalma, e explica-nos:</strong></div><div style="text-align: justify;">Oiça. Se me ocorre o esboço duma figura, uma observação, um detalhe, tomo um apontamento, uma nota... Depois, aguardo o momento oportuno, e quando ele chega, minha mulher senta-se aí a essa secretária e escreve o que eu, a passear dum lado para o outro, vou compondo e lhe dito. Aqui tem... Agora o meu processo de trabalho... Eu sei lá! Essas coisas vêm-me à cabeça e às vezes sucede não ficarem mal...</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Diz isto numa grande simplicidade, como que envergonhado de falar de si, nervosamente, com os olhos acesos e um riso, alto, infantil, que contrasta singularmente com a sua elevada estatura e com os seus cabelos brancos. </strong><strong>Abre uma gaveta da secretária e mostra-nos um grande rolo desordenado de folhas de papel, cobertos de uma caligrafia fina e veloz:</strong></div><div style="text-align: justify;">Vê… É o manuscrito das minhas Memórias, o 3.° volume. Foi minha mulher quem escreveu tudo isto.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>O que haverá ali, naquele rolo de papéis à volta dos quais, conhecida a sinceridade e a irreverência do escritor, se agitam já tantas curiosidades e receios? </strong><strong>Hesitamos em perguntar-lho e não nos atrevendo a fazê-lo, damos um novo rumo à entrevista:</strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Que idade tinha o senhor Raul Brandão quando começou a escrever?</strong></div><div style="text-align: justify;">A dizer-lhe a verdade, já me não lembro. E depois, que interesse pode isso ter para os seus leitores? Foi na Revista de Hoje, onde colaboraram António Nobre, Alberto de Oliveira e Junqueiro, que saíram as minhas primeiras coisas... Eu acompanhava, então, muito, com Alberto de Oliveira e Nobre... </div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Raul Brandão não está dando; uma entrevista. Conversa connosco, animado, passeando, dum lado para o outro, como se estives se ditando a sua mulher.</strong><br />
<br />
<strong><u>O primeiro livro</u></strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">O meu primeiro livro Impressões e Paisagens publiquei-o no Porto... Eu lhe digo, espere... Foi em 1890. Seguiu-se-lhe a História dum Palhaço, em 1896, editado pela Parceria António Maria Pereira.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Estive quase a dizer-lhe que ainda há uma dúzia de anos comprei naquela livraria um exemplar novo da primeira edição da História dum Palhaço, por meia dúzia de tostões. Mas considerando a tempo, calei-me. Raul Brandão voltara a falar-nos de António Nobre. Dos passeios que davam juntos pela Foz, por Leça, até à Boa Nova. Pelo milagre da sua palavra evocadora eu sentia entre nós a presença do poeta. </strong><strong>Subitamente, o cronista do El-rei Junot sorriu a uma lembrança e, surpreendendo uma interrogação no nosso olhar, prosseguiu em voz alta:</strong></div><div style="text-align: justify;">Estou a lembrar-me dum artigo que publiquei sobre Camilo e Eça. Terminava por dizer que se Camilo se suicidara com um tiro, Eça, em igualdade de circunstâncias, se envenenaria. Eça de Queiroz leu o meu artigo e, achando graça, pediu a um amigo para lhe indicar quem eu era, quando passassem por mim. Efectivamente, uma tarde, embora eu simulasse não dar por isso, senti o olhar de Eça seguir-me com curiosidade e interesse.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>O Mestre trabalhou nos jornais durante algum tempo, não é verdade?</strong></div><div style="text-align: justify;">Sim, durante muitos anos. Foi na República Portuguesa, de João Chagas, que eu iniciei a minha vida jornalística. Vencido o movimento revolucionário de 31 de Janeiro, João Chagas foi deportado e o jornal terminou. Depois, em Lisboa, antes de me aceitarem num jornal foi uma tragédia. Imagina lá... Não acreditavam que eu servisse para jornalista. De tal modo que a princípio tive de trabalhar de graça: mas, por fim, já era solicitado e me pagavam bem.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Em que jornais trabalhou o senhor Raul Brandão?</strong></div><div style="text-align: justify;">Aqui, em Lisboa, estive no Correio da Manhã, de Manuel Pinheiro Chagas, e no Dia. Mais tarde, fui dono do Imparcial, que António José de Almeida me comprou para fazer A República, onde também colaborei. E agora, ainda, às vezes, escrevo na Seara Nova, que já dirigi.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Que escritores impressionaram mais profundamente o seu espírito?</strong></div><div style="text-align: justify;">Dos portugueses, Camilo.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Fale duma maneira geral...</strong></div><div style="text-align: justify;">Os russos interessaram-me muito, destacando entre estes Dostoiewsky. Mas os que sempre mais atraíram o meu interesse e a minha curiosidade foram os escritores de memórias. Principalmente Saint Simon, Casanova, Benevenuto Cellini, e, acima de todos, o Cardeal de Metz. Mas quem deixou um traço mais profundo na minha existência e na minha alma, não foram os escritores: tem sido minha mulher, e foi minha mãe e uma velha criada, a Maria Emília... No prefácio do 2.° volume das Memórias já eu disse o grande lugar que minha mulher ocupa na minha vida. De minha mãe... </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><strong>e, Raul Brandão, acedendo a um pedido nosso, ditou-nos esta linda página de ternura, do seu volume inédito de Memórias:</strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong><u>Uma evocação</u></strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
Algumas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui, a meu lado. Minha mãe, só nervos e paixão, viu cair por terra todos os seus sonhos e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo. A realidade afastou-a sempre de si. Venceu-a. Alimentou-se do mesmo sonho que a devorou até final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Dela herdei a sensibilidade e também o sonho. Bastava que a bica do quintal deitasse menos para minha mãe adoecer. Ficava horas a olhar extasiada o pouco de musgo humedecido, donde escorria, vindo da escuridão, o fio azul infatigável que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas líquidas, que logo subiam a superfície reluzindo iluminadas.</div><div style="text-align: justify;"><br />
Às vezes íamos vê-la brotar no fundo da mina e assistíamos, ansiosos, ao nascer da água borbulhando na madre e escorrendo pela caleira de pedra. Quando, mais tarde, minei o monte fi-lo com a mesma ansiedade. De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar de minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo desde o jorro de Inverno que transborda, ao fio de Setembro, deitado com aflição.</div><div style="text-align: justify;"><br />
– Se secasse!...</div><div style="text-align: justify;"><br />
De noite punha o ouvido à escuta, como acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz extraordinária de pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira, nem a das folhas, nem a do vento – nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Às vezes muda de tom, às vezes, e, por momentos, emudece.</div><div style="text-align: justify;"><br />
– Secou! – E lá torna a correr.</div><div style="text-align: justify;"><br />
Plantou árvores até aos últimos dias como eu as planto. E já prostrada, mantinha de pé a ilusão e teimava em sonhar, como eu sonho, até final.</div><div style="text-align: justify;"><br />
Às vezes, tendo corrido o quintal numa exaltação, corria para ela e desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Minha mãe não me dizia palavra, nem sequer me estranhava porque via em mim reproduzida a sua sensibilidade exagerada – só me pousava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho. A lua aparecia atrás dos montes sobre a mais bela paisagem do mundo, porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.</div><div style="text-align: justify;"><br />
O meu sonho está preso por um fio ténue indestrutível ao fundo do seu sepulcro. Talvez porque o amor nunca mais se apaga, talvez porque a luz seja a única realidade do mundo, o que é certo é que eu e ela olhamos ainda hoje um para o outro com a mesma ansiedade. Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente e minha mãe não? Minha mãe é um fantasma de saudade, lá está todas as noites, ao pé da bica. Não a separo daquele fio que a lua toca por momentos com o dedo molhado em branco, e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala com encanto àqueles que a sabem amar."</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Depois, enternecidamente, ergueu diante de nós a figura da velha criada. São ainda para o mesmo livro os seguintes períodos, que nos ditou:</strong></div><div style="text-align: justify;"><br />
A Maria Emília foi até morrer nossa criada. Estou a vê-la, de bigode branco e olhos espertos, dum azul já desbotado pela velhice, mas teimando em exprimirem ternura até à morte. Vejo-lhe a boca desdentada, a sorrir, e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra. Doente duma perna, sempre a conheci a mancar, atravessando a vida a mancar e a sorrir. Porque essa é a expressão mais íntima e mais bela da sua alma – a alegria na desgraça.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Os sessenta anos para o talento para a alma de Raul Brandão são a plena mocidade. Perguntamos-lhe: </strong><strong>Além do 3.º volume das Memórias, que outras obras prepara ainda o Mestre?</strong></div><div style="text-align: justify;">Tenho no prelo um livro para crianças, feito de colaboração com minha mulher – Portugal Pequenino, de Raul Brandão e Maria Angelina… E na próxima Primavera conto publicar uma novela – Pobre de Pedir.</div><div style="text-align: justify;"><br />
<strong>Alegremo-nos. A nossa literatura, actualmente tão dessorada e anémica, vai enriquecer-se com um livro de valor. </strong><strong>E quantas obras belas e audazes não podemos ainda esperar dos seus cabelos brancos e da sua mocidade.</strong></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7944897216415674784.post-12264773135238885422010-09-23T13:00:00.000-07:002010-11-25T13:03:33.411-08:00A morte de Raul Brandão<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJaTfbTqI69hK9Rkryt5eTClaT609EubnmI-AtYPYYPkFXq4CoLjb9Xcd2ofGu36p7VsxFHfz_HAYlPoVx5QQY3Eht62I3v4lci4y6zHaJIc8pnBjHlC6qrf9bl2qr_0OHZQAAQb6qQiE/s1600/3457147962_b0f1e116ce.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" ox="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJaTfbTqI69hK9Rkryt5eTClaT609EubnmI-AtYPYYPkFXq4CoLjb9Xcd2ofGu36p7VsxFHfz_HAYlPoVx5QQY3Eht62I3v4lci4y6zHaJIc8pnBjHlC6qrf9bl2qr_0OHZQAAQb6qQiE/s320/3457147962_b0f1e116ce.jpg" width="231" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">"O artista de olhos claros que desapareceu era demasiadamente homem para ser estátua; o seu coração pulsava demais pelos que sofrem e choram e gemem doloridos, para poder atingir o sarcasmo e a frieza analitica que caracterizam a maioria dos génios catalogados, gigantes de mão dura que nos amarfanham e plasmam os sentidos sem perder a sua inalterável frieza, a frieza do mármore incomovivel de todos os monumentos."</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><strong>Amâncio Cabral <em>in</em> Ilustração, nº 120</strong></div>helenahttp://www.blogger.com/profile/12464905504265428180noreply@blogger.com0