quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A farsa

[Capa de Julião Machado para a 1ª edição, em 1903]

Desde pequena que sinto isto aqui a remorder-me, sem descanso, dia e noite, sempre. A inveja é um veneno que me tem azedado toda a existência: é um veneno amargo e sem o qual eu não posso passar. A inveja derranca-me e excita-me, revolver todo o meu ser e faz subir à tona de alma a lama esquecida: exaspera-me todas as feridas: põe-mas em carne viva. Faz-me bem. Desde pequena que toda a gente tem pena de mim e me despreza. Sou assim velha desde pequena: aos onze anos já era reflectida e má como as cobras. - É tão feia, coitadinha! - E esta estúpida piedade acompanhou-me - cresceu comigo, pegou-se-me e queima-me com um vestido de fogo.
- Toda a gente tem tido pena da Candidinha!
Já em pequena trazia este mesmo xaile, este mesmo trapo, que foi crescendo comigo. E não creio - nunca cri em Deus, no Deus dos pobres, no Deus que recomenda a desgraça, a humilhação, a esmola, no Deus que aconselha a resignação e a fome. No Deus a quem as velhas ricas fazem lausperenes e rezam ladainhas; no Deus que as protege -  e que elas têm em casa em ricos oratórios, entre lamparinas e velas de cera, pregado na cruz, com resplendores de brilhantes.
Elas mandam nos padres, confessam-se, vão às missas com vestidos de seda a rugir, dispõem do crucificado, ao qual desde pequena me obrigam a rezar, com os joelhos de rastos nas lajes, doridos e inchados de frio... É desse tempo que data o frio que se me coou até aos ossos e nunca mais me deixou.
O meu filho?... O meu filho alimentei-o com ódio - criei-o à custa da desgraça. Preguei-lhe todos os rancores, todos os exasperos, tudo quanto sofri. Mostrei-lhe a minha alma e a alma dos outros. Fartei-o de Verdade. Disse-lhe, é certo, que neste mundo só o dinheiro vale, e que os pobres são sempre desprezados e calcados. Os pobres nunca têm razão: quebra-se sempre pelo mais fraco. O meu filho qui-lo à minha imagem e semelhança; desejei insuflar-lhe isto que sinto; livrá-lo de ser escarnecido e pobre; de viver de esmolas. Quis que o meu filho fosse eu.

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