quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Um sentido para a vida

Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia - mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer - e eles vão morrer.

A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei - o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros. Não é o gozo que eu invejo (não dou um passo para o gozo) - é o pedreiro que passa por aqui logo de manhã com o pico às costas, assobiando baixinho, e já absorto no trabalho da pedra.

Se vale a pena viver a vida esplêndida - esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? ... Só a luz! só a luz vale a vida! A luz interior ou a luz exterior. Doente ou com saúde, triste ou alegre, procuro a luz com avidez. A luz é para mim a felicidade. Vivo de luz. Impregno-me, olho-a com êxtase. Valho o que ela vale. Sinto-me caído quando o dia amanhece baço e turvo. Sonho com ela e de manhã é a luz o meu primeiro pensamento. Qualquer fio me prende, qualquer reflexo me encanta. E agora mais doente, mais perto do túmulo, busco-a com ânsia.

Raul Brandão, in Se Tivesse de Recomeçar a Vida

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O assombro da incoerência do nosso ser

Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer - desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas.

O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo... Também entendo que é tão difícil asseverar a exactidão dum facto como julgar um homem com justiça.

Todos os dias mudamos de opinião. Todos os dias somos empurrados para léguas de distância por uma coisa frenética, que nos leva não sei para onde. Sucede sempre que, passados meses sobre o que escrevo - eu próprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço...

É por isso que não condeno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim próprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo - para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é fácil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erróneas.

Raul Brandão in Se Tivesse de Recomeçar a Vida

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A alma é exterior

A alma, ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia tomar cor. Há seres cuja alma é uma contínua exalação: arrastam-na como um cometa ao oiro esparralhado da cauda - imensa, dorida, frenética. Há-os cuja alma é de uma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes da matéria comunicar. O amor não é senão a impregnação desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível. Assim é que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus.

Raul Brandão, in "Húmus"

domingo, 16 de outubro de 2011

Memórias, volume I

Janeiro de 1915
AOS MORTOS
PREFÁCIO

Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existência foram outros: foram, por exemplo, D. João da Câmara, poeta e santo, Corrêa de Oliveira, um chapéu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornais?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.
A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses, sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões ião nítidas como na primeira hora ouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul-ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que faça, cada vez se afastam mais de mim... Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo de oiro, a outra-banda verde... Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração a morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no Inverno em que secou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.Lá está a velha casa abandonada, e as árvores que minha mãe, por sua mão, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobe o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar.

Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu av6, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azuis, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que elas liam, com o Feliz Independente do Mundo e da Fortuna e a Recreação Filosófica do padre Teodoro de Almeida. Ouço, desde que me conheço, sair do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da campanha: – Ó sê Manuel, cá pra baixo prò mar! – Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arrais, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Há que tempos! – e foi ontem... A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha à proa; do mar profundo – chape que chape – só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do ar. Nasce da água, mistura-se na água, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita no ar vivo que respiro, no oceano imenso que me envolve. Iça! iça! – e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, à vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, além no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diáfana, emerge enfim, como aparição, do fundo do mar.

A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem à praia para lavar as redes, e o velho piloto-mor, de barba branca, sentado à porta da Pensão, fuma inalterável o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céu derrete. Mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o Vai com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o bendito, tanta foi a pesca. – Quantas dúzias? – Um cento! dois centos! – Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no Inverno, a sardinha que os batéis carreiam do mar inesgotável, estivando de prata todo o cais. Às vezes o peixe miúdo e vivo é tanto que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna à mostra, para o levarem, apregoando- o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em Setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o Sul uma parede compacta que tem léguas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, à primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fora, anunciando o Inverno que vem próximo. O quadro muda, e os homens morrem à boca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da ressaca, o velho arrais de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injúrias, para lhes dar ânimo, e todo o mulherio da Póvoa, de Matosinhos, da Afurada – vento sul, camaroeiro içado –, com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lágrimas: – Ai o meu rico homem! o meu filho, que não o torno a ver! – E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, Inverno a Inverno, lhos leva todos para o fundo.

O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor o do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equívocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais... Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça às feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a água empapada, e, entre as ervas gordas como bichos, pegadas de bois cheias de tinta azul; reflectindo o céu implacável de Agosto. Os pássaros com as asas abertas desconfiam e hesitam: a sede aperta-os o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha, agarramo-los com ferocidade. Chiu!... Uma andorinha descreve lá no alto um círculo perfeito, e vem, no voo desferido, arrepiar com o bico a água estagnada. Toca numa palheira de visco – é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É penas e vida frenética. E essa vida pertence-te!... Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rãs e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura torva, nem o Anticristo, me comunicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba, que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando saía à estrada... Sou capaz de te dizer qual o tom róseo de certos dias. quando o pessegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmúrio da minha bica não me sai dos ouvidos até à hora da morte. Quase todos os meus amigos – o Nel, que não tornei a ver... – são dessa época. Doutras impressões mais tardias não restarão vestígios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos – que já não existem – acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longínquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim... Olha, olha ainda e extasia: e o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Bóia espuma na água viva que a maré traz da barra... E não há cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.

sábado, 15 de outubro de 2011

Ninguém pode encarar-se a si próprio até ao fundo

Ninguém pode com isto, ninguém pode encarar-se a si próprio e ver-se até ao fundo. A tua meticulosidade é de ferro, a tua meticulosidade está de tal maneira entranhada no teu ser que sem ela não existes. Pois até a tua meticulosidade se há-de dissolver! E tu sem o hábito não existes, nem tu sem o dever, nem tu sem a consciência. Sem estas palavras a vida não existe para ti, e sem escrúpulos que te resta? O que aí está é temeroso, seres estranhos, seres que, se dão mais um passo, nem eu nem tu podemos encarar com eles. Andam aqui interesses - e outra coisa. Com mil palavras diversas e ignóbeis, mil bocas que te empurram para a infâmia - outra coisa. Tens de confessá-lo. Não é a consciência - não é o remorso - não é o medo. É uma coisa inexplicável e imensa, profunda e imensa, que assiste a este espectáculo sem dizer palavra - e espera... És imundo, és a vida.

Raul Brandão, in 'Húmus'

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A primitiva infâmia

Desde que se cumpram certas cerimónias ou se respeitem certas fórmulas, consegue-se ser ladrão e escrupulosamente honesto - tudo ao mesmo tempo. A honradez deste homem assenta sobre uma primitiva infâmia. O interesse e a religião, a ganância e o escrúpulo, a honra e o interesse, podem viver na mesma casa, separados por tabiques. Agora é a vez da honra - agora é a vez do dinheiro - agora é a vez da religião. Tudo se acomoda, outras coisas heterogéneas se acomodam ainda. Com um bocado de jeito arranja-se-lhes sempre lugar nas almas bem formadas.

Raul Brandão, in "Húmus"

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Medo da própria alma

Se Deus não existe... O pior de tudo é que eu digo e afirmo - Deus não existe! - mas na realidade não sei se Deus existe ou não. Não há nada que o prove - ou que prove o contrário. O pior de tudo é que eu sinto uma sombra por trás de mim e não sei por que nome lhe hei-de chamar. O pior que podia acontecer no mundo foi alguém pôr esta ideia a caminho.

Mas mesmo que Deus não exista, tenho medo de mim mesmo, tenho medo da minha alma, tenho medo de me encontrar sós a sós com a minha alma, que é nada, o fim e o princípio da vida e a razão do meu ser. Mesmo que Deus não exista e a consciência seja uma palavra, há ainda outra coisa indefinida e imensa diante de mim, ao pé de mim, perto de mim.

Raul Brandão in "Húmus"

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Vivemos de palavras

Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe. Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. Mas há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há momentos em que cada um grita: - Eu não vivi! eu não vivi! eu não vivi! - Há momentos em que deparamos com outra figura maior, que nos mete medo. A vida é só isto?

Raul Brandão in Húmus

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O hábito

"O hábito é que me faz suportar a vida. Às vezes acordo com este grito: - A morte! A morte! - e debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh! Como a vida pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas."

Raúl Brandão in Húmus

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O tempo

"Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos."

Raúl Brandão in Húmus

domingo, 9 de outubro de 2011

Convenções

"Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê-la vir à supuração."

Raúl Brandão in Húmus

sábado, 8 de outubro de 2011

Vida fictícia

A vida é fictícia, as palavras perdem a realidade. E no entanto esta vida fictícia é a única que podemos suportar. Estamos aqui como peixes num aquário. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até à cova sem dar por ela. Estamos aqui a matar o tempo.

Reduzimos a vida a esta insignificância... Construímos ao lado outra vida falsa, que acabou por nos dominar. Toda a gente fala do céu, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com ele.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Filipe Abranches: O Diário de K.

["- Amar ou morrer? Amar ou morrer?
- Amar! Amar!"]

[Sonhar... é tudo o que resta!]

Em 2001, Filipe Abranches, autor de banda desenhada, publicou um livro lindíssimo [edições Polvo], baseado na história de amor de K. Maurício, de A Morte do Palhaço, de Raul Brandão. Citação que escolhe para abrir: "Nada se perde, cada um traz consigo, cometa que arrasta a cauda de lama ou de ouro, o seu passado, vestígios de ideias, crimes, horas de amargura e horas em que se beijaram lábios de mulher por quem a gente se perde... Creia na minha experiência de vida..."

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Raul Brandão: sobre a mãe

"Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão: viu cair por terra todos os seus sonhos - e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo! A realidade temerosa afastou-a sempre de si. Venceu-a. Deu-nos vida a todos. Alimentou-nos do mesmo sonho que a devorou até ao final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida. Foi dela que herdei a sensibilidade e o amor pelas árvores, pela água, e dela herdei também o sonho...

domingo, 3 de outubro de 2010

Raul Brandão: sobre o pai

"Aos 23 do mês passado (Julho de 1910) morreu meu pai amachucado, exausto e pobre.  Encntrão de um, repelão de outro, assim foi até à cova. Tinha 67 anos incompletos. Não podia mais. Encontraram-se-lhe alguns cobres no bolso. Há muitos anos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: aos domingos. Aos domingos, metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lágrimas sem fim sobre um velho romance de Camilo."

sábado, 2 de outubro de 2010

Foz do Douro, Porto

Monumento de pedra e bronze dedicado a Raul Brandão.
Concebida por Henrique Moreira em 1967.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O pobre de pedir

[Editado postumamente em 1931]
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Há um momento atroz entre nós os dois em que ambos rangemos de dor: é quando eu suspeito e ela suspeita que o nosso casamento foi uma mentira. É quando no silêncio que me impus, de propósito para a fazer sofrer, ela desconfia que nunca a amei - e esse pensamento dói-lhe a ponto de gritar de dor - é quando eu desconfio que tudo em mim foi cenário e que até o amor está fora do meu alcance. E ambos, em lugar de nos recriminarmos, remoemos em silêncio, eu e os meus pensamentos hostis, ela e os seus pensamentos dolorosos. Tenho a impressão que chega a ser cruel. Porque eu despedaço-me e grito. Chego a gritar de dor - e ela cala-se.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Os Pescadores

[À memória do avô, morto no mar]

Tudo aqui é pobre e humilde, mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham, os pescadores não fazem mais nada - deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha. A sorte destas mulheres numerosas melhorou muito desde que a Câmara lhes aforou terrenos no areal para cultivo. São as mulheres também que, depois da sardinha disputada a lanço, a levam à cabeça para a casa da salga, grandes barracões de madeira com manjedouras encostadas às paredes para as bestas e um depósito de sal branco de Aveiro.  É ali que o almocreve a salpica de fresco antes de se meter a caminho, ou as mulheres a lavam em água ensossa. Só em Mira há vinte desses barracões, onde, quando é muita, ou não tem comprador,  a metem em lagares de madeira e em dornas, ficando de salmoura até chegar o Inverno - quando o homem esfaimado a estende num pedaço de pão sabendo-lhe a mais...

Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filósofo como eu.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A farsa

[Capa de Julião Machado para a 1ª edição, em 1903]

Desde pequena que sinto isto aqui a remorder-me, sem descanso, dia e noite, sempre. A inveja é um veneno que me tem azedado toda a existência: é um veneno amargo e sem o qual eu não posso passar. A inveja derranca-me e excita-me, revolver todo o meu ser e faz subir à tona de alma a lama esquecida: exaspera-me todas as feridas: põe-mas em carne viva. Faz-me bem. Desde pequena que toda a gente tem pena de mim e me despreza. Sou assim velha desde pequena: aos onze anos já era reflectida e má como as cobras. - É tão feia, coitadinha! - E esta estúpida piedade acompanhou-me - cresceu comigo, pegou-se-me e queima-me com um vestido de fogo.
- Toda a gente tem tido pena da Candidinha!
Já em pequena trazia este mesmo xaile, este mesmo trapo, que foi crescendo comigo. E não creio - nunca cri em Deus, no Deus dos pobres, no Deus que recomenda a desgraça, a humilhação, a esmola, no Deus que aconselha a resignação e a fome. No Deus a quem as velhas ricas fazem lausperenes e rezam ladainhas; no Deus que as protege -  e que elas têm em casa em ricos oratórios, entre lamparinas e velas de cera, pregado na cruz, com resplendores de brilhantes.
Elas mandam nos padres, confessam-se, vão às missas com vestidos de seda a rugir, dispõem do crucificado, ao qual desde pequena me obrigam a rezar, com os joelhos de rastos nas lajes, doridos e inchados de frio... É desse tempo que data o frio que se me coou até aos ossos e nunca mais me deixou.
O meu filho?... O meu filho alimentei-o com ódio - criei-o à custa da desgraça. Preguei-lhe todos os rancores, todos os exasperos, tudo quanto sofri. Mostrei-lhe a minha alma e a alma dos outros. Fartei-o de Verdade. Disse-lhe, é certo, que neste mundo só o dinheiro vale, e que os pobres são sempre desprezados e calcados. Os pobres nunca têm razão: quebra-se sempre pelo mais fraco. O meu filho qui-lo à minha imagem e semelhança; desejei insuflar-lhe isto que sinto; livrá-lo de ser escarnecido e pobre; de viver de esmolas. Quis que o meu filho fosse eu.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Impressões e Paisagens

[Primeiro livro, de contos, publicado aos 23 anos]

Honesto e leal. Rude, cheio de rugas, bem velho já. Com saúde ainda, os dentes brancos, a barba grisalha, o olhar vivo e moço. Cheia de dedicações a sua vida inteira. Criança ainda embarcara, crestara-se-lhe a pele, fizera-se valente no mar. Sustentava a mãe. Tinha asperezas na voz; âncoras e datas a tinta azul nos braços possantes... Envelhecera, morrera-lhe a mulher, e ele ficara em terra por fim, com o filho e os netos. A neta casara um dia com o Nel, um rapagão que, como ele, partira em seguida na sua primeira viagem de marinheiro para o Brasil. Mas quando a barca voltou, ele não vinha. Lá tinha ficado, uma noite de tempestade, no mar... Envelhecera, não podia trabalhar. O filho, os netos, pescavam, e ele ajudava-os a consertar as redes. Mas o peixe escasseava... E o que ele sofria ao ver os outros trabalhar no batel enquanto ele ficava em casa a remendar as velas. O que ele sofria, bom Deus!...

[Do conto "O Marinheiro"]